Por Carol Gonçalves
Impossível não cair nas graças da Fabiola. É natural nos sentirmos íntimos dela apenas lendo seus relatos pra lá de sensíveis, profundos, encorajadores e cheios de empolgação. Só por isso já vale a pena essa entrevista! Mas tem muito mais…
Fabiola Peixoto Ferreira La Torre mora em São Paulo desde 1998, mas nasceu em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro. Foi para a “terra da garoa” terminar os estudos em medicina e realizar residência em pediatria, infectologia e terapia intensiva. Ela deixa bem claro que ama a profissão e “suas criancinhas”, e se considera pediatra por natureza!
Aos 41 anos, é diretora da UTI pediátrica dos hospitais A.C. Camargo Cancer Center e Leforte, ambos na capital paulista. Também é plantonista do Hospital Infantil Darcy Vargas, instituição estadual referência em oncologia pediátrica.
No início de junho de 2016, uma notícia mudou completamente sua perspectiva de vida: foi diagnosticada com câncer de mama. “Aí eu me transformei: além de mãe e médica, passei a ser também paciente”, diz. Para retratar esse desafio, escreveu o livro “De médica a paciente”, lançado em outubro, em São Paulo. Em cada página, Fabiola reforça a ideia que o câncer a modificou de uma forma positiva e despertou sentimentos que estavam escondidos. “Tive a oportunidade de ter experiências diferentes, que jamais pensei em vivenciar, afinal, eu estava sempre do outro lado, como médica”, revela.
Esse tema é importantíssimo para a sociedade em geral, tanto por abordar o câncer, que corre o risco de virar epidemia no Brasil, quanto pela oportunidade de se discutir a relação médico x paciente e a empatia.
Conte como se deu a descoberta da doença e o impacto em sua rotina.
Sempre fiz o autoexame mensalmente, às vezes até mais de uma vez por mês, e mamografia de rotina. Assim, palpando meu seio durante o banho, descobri um carcinoma ductal invasivo na mama direita. Em dezembro de 2015, minha mamografia estava normal, portanto, encontrei o nódulo bem no início. O que mudou na minha rotina de trabalho, no começo, foram os dias iniciais de exames de estadiamento, passagem de cateter central e outros procedimentos. Passei a primeira semana pós diagnóstico dentro do hospital como paciente e não como médica. Nesse momento tive de me ausentar das atividades normais. Essa parte foi muito difícil, pois eu sou coordenadora de duas UTIs pediátricas e sempre fui muito presente. Achava que tudo tinha de passar por mim. Daí veio o primeiro impacto: aprender a delegar funções. Quando melhorei, mantive a rotina de coordenação com exceção dos dias de quimioterapia, radioterapia e recuperação de pós-cirurgia. Um outro fator de mudança foi que não pude dar plantão, o que também foi difícil. Todo intensivista ama a clínica e o barulho constante dos monitores dentro de uma UTI. Mas era arriscado por causa da imunidade. Senti muita falta no início, mas hoje agradeço porque soube administrar mais minha vida e diminuir a carga horária de trabalho. Atualmente passo mais noites e fins de semana em casa.
Como o câncer modificou sua vida de maneira positiva?
Como médica eu aprendi a intubar, passar cateter, fazer reanimação cardiopulmonar e visita multidisciplinar, auscultar pulmões e coração, mas como paciente aprendi muito mais: a vida é realmente fascinante! Como a gargalhada do meu filho é linda! Há pessoas com dores muito maiores que a sua. Sempre. Por mais que eu já tivesse vivenciado a doença em crianças, como médica, agora que vejo as dificuldades e os medos dos adultos, percebo o quanto maior é o sofrimento alheio. Aprendi que algumas pessoas que você não via há anos simplesmente surgem das cinzas. Outras que você vê frequentemente desaparecem. Outras, ainda, que nem conhecia, passam a ser suas melhores amigas. E isso é simplesmente fantástico. O mundo ao seu redor fica mais colorido. Amigos sumiram, mas esses eu não julgo, apenas não souberam lidar com a situação. Os que permaneceram, eu já sabia quais seriam, só me confirmaram, e os que surgiram são anjos que Deus colocou em minha vida. Os seus amigos com câncer, então… são os melhores. Acho que agora a gente deveria até montar um clube, mas vamos ter preconceito e não deixar qualquer um entrar (risos)! Aprendi também que é fácil sorrir mesmo quando se tem um problema e que ser alegre é uma escolha que só depende de nós. Muitas coisas que eu reclamava e que ocupavam a maior parte do meu dia, principalmente na rotina de trabalho, ficaram tão pequenas e insignificantes que não persistem tempo demais no meu pensamento! Descompliquei também a vida! Por mais que uma dor pareça infindável, uma hora ela vai passar – e depois de uns dias, você nem vai se lembrar dela. Aprendi que a alimentação e os exercícios físicos são a base para uma vida saudável, mas isso não impede que você tenha algumas doenças, embora possibilite uma recuperação muito melhor e bem mais rápida. Eu tenho plena consciência dos poucos efeitos colaterais da minha quimioterapia devido aos exercícios que pratico. Aprendi, ainda, que sua verdadeira família estará com você nos momentos mais difíceis. A família é a força, é amor puro, perto ou longe. Sempre fui muito ligada à minha, e agora tenho conexão até telepática. E no trabalho eu aprendi uma coisa fantástica: médicos podem se tornar seus verdadeiros amigos. E verdadeiros amigos podem se tornar seu médico para todas as horas – através de Facebook, WhatsApp, SMS… Eu tinha muitos médicos amigos, mas de trabalho. Aliás, meu melhor amigo é médico. Agora, meus médicos são meus amigos, dá para entender? Descobri que: ninguém é novo demais, legal demais, rico demais ou pobre demais para ter câncer; que dizer “eu te amo” se torna mais fácil quando lembramos que somos mortais; nem tudo está sob nosso controle, confie e siga, que amanhã é um novo dia; a vida é muito mais do que acordar, trabalhar e dormir, é ter momentos e contato social com quem amamos, ter dinheiro e não ter tempo não combinam; na hora que você precisa, a força vem; acreditar que vai dar certo é seu único recurso; mãe e pai dão a vida por você, irmão é a única pessoa que você pode contar tudo, sem se preocupar se vai brigar com você ou não, se vai rir ou chorar, se vai achar ridículo ou legal, e que com certeza vai te criticar, mas sempre por querer o seu melhor. Reaprendi que conhecer seu corpo pode salvar sua vida – percebeu um caroço diferente no seio? Procure um médico! Sempre fui da ciência, mas, agora, tive a prova viva em mim!
Conte uma experiência marcante desse período.
O câncer é uma doença que tenta tomar o controle da situação em algum momento do seu tratamento após o diagnóstico. E eu fui aprendendo a lidar com isso. Em setembro de 2016, quando estava usando o Perjeta® (pertuzumabe), deparei-me com um dos piores efeitos colaterais da minha quimioterapia: não poder visitar a minha amada família. Posso até falar que a quimio não teria sido tão ruim se eu tivesse podido visitá-los. Tive diarreia por mais de dez dias seguidos, cerca de 20 episódios ao dia, por causa da minha terapia-alvo, o anticorpo monoclonal. Ele me salvou do câncer, mas me impediu de ir à minha cidade natal passar o aniversário da minha irmã com ela e ver minha afilhada Lívia desfilar pela primeira vez. Foi muito doloroso tudo isso para mim. É como uma “castração” de vida. O câncer tem o inconveniente das privações. Se eu não fosse tão resiliente, a doença teria me dominado nesse momento e me feito chorar. Entretanto, ele não conseguiu, pois procuro encarar a vida sempre pelo lado positivo e aprendo com isso. Criei forças para superar a distância da minha família do Rio de Janeiro e fiquei curtindo, de longe, as fotos deles. Fiquei em São Paulo e aproveitei para estudar para minha dissertação de tese de mestrado, que defendi no meio do meu tratamento.
Como é sua rotina atualmente?
Diminuí minha carga horária em um hospital, e isso foi mais uma coisa boa que o câncer me trouxe: me fez perceber que não adianta só trabalhar. Eu sempre amei a medicina e acabava me dedicando quase só a ela. Hoje tento fazer, o máximo possível, parte da história de vida do meu filho. Tenho plantão em dia fixo e fim de semana de 12 horas a cada quatro semanas, e não trabalho mais à noite: outra coisa boa que o câncer me deu. E, através das duas coordenações, estou em visitas multidisciplinares durante a semana, além de participar de várias reuniões, mas em horários mais “normais”. Com relação ao meu acompanhamento do câncer, além do tamoxifeno, tenho exames de rotina a cada seis meses e consultas médicas a cada três meses. E as vezes é necessário fazer exame aos domingos, por falta de tempo na semana. Além disso, entrou na minha vida as palestras voltadas para o assunto “de médica a paciente”.
Por que você resolveu compartilhar a experiência em um livro?
Este livro foi compilado a partir das postagens do meu blog, que criei quando tive o diagnóstico de câncer de mama, e de outros textos escritos durante o meu tratamento. Eu acho interessante registrar, de alguma forma, a nossa experiência como paciente oncológico, pois algumas pessoas lutam contra um câncer em um determinado local do seu corpo e outras lutam contra o câncer da alma, que é o pior! Eu percebi ao longo do meu tratamento que não há na literatura brasileira um livro que aborde assuntos gerais de maneira multidisciplinar e que possa servir de maneira conjunta para paciente, médico e não paciente. A vaidade serve como um filtro para o nosso comportamento. Acho que a maioria das mulheres com câncer de mama sente isso, uma exposição sem filtro. Porque a mama é um órgão ligado à feminilidade, os cabelos deixam de definir o seu rosto e é preciso lidar com a vaidade usando lenços, novos cabelos, novo modelo de sutiã ou biquíni, uma prótese ou duas… Felizmente, não precisei tirar toda a mama porque meu tumor foi detectado no início, mas fiz quimio e radioterapia. Então, pensei em escrever um livro que abordasse de forma um pouco mais técnica tudo que passei ao longo do meu diagnóstico e tratamento. Além disso, senti falta de algum lugar que abordasse o câncer de mama em todos os aspectos, do diagnóstico ao tratamento. Para compor o livro, pedi depoimentos das amigas do peito no grupo e vieram, inclusive, de pacientes com câncer de ovário e com linfoma. E qual foi minha surpresa ao receber depoimentos de duas médicas também pacientes e uma estudante de medicina. Foi emocionante! E não parou por aí! Recebi depoimento de ex-paciente oncológica minha, ex-colega de faculdade, pai, mãe, irmã… Muita emoção! Além disso, também incluí todas as informações sobre a patologia do ponto de vista geral.
O que representa para você, neste momento, a publicação do livro?
Representa mais um ponto positivo do meu câncer. E mais, diante de tantas mensagens maravilhosas que recebi de mulheres que já leram o livro após o lançamento e disseram o quanto ele está as ajudando, a gente percebe que nada nessa vida é em vão. Durante o tratamento, com os cuidados e informações de toda a equipe médica e de tudo que sempre estudei, os pensamentos foram dando lugar a uma determinação em direção à cura. Com o suporte espiritual e físico da família e de amigos queridos, eu venci e transcrevi tudo que passei no meu livro para que eu pudesse ajudar posteriormente mulheres que passassem por isso também.
De forma mais ampla, fale um pouco sobre a relação médico x paciente atualmente.
O maior desafio do médico é o medo da própria dor ao encarar a doença do paciente e sofrer por ele. Nesse momento, ele se fecha e acaba com a verdadeira relação médico x paciente. Há uma necessidade no mundo atual urgente que ambos se olhem frente a frente sem o medo do processo que hoje já vem por trás de qualquer relacionamento. Um outro desafio é a confiança. Ao escolher o médico, deve-se confiar nele. E ele precisa entender que quando o paciente vai buscar uma opinião diferente não é dúvida, é angústia. O médico se sente habitualmente insultado quando isso acontece. Eu sei, vi isso e já me senti assim também. Mas vivenciei a angústia das minhas amigas do peito e suas necessidades de opiniões diferentes.
Como a tecnologia tem modificado a relação médico x paciente?
O uso da tecnologia vem ajudando o paciente a ter mais controle sobre seu tratamento e mais opções na hora de buscar um médico. Por outro lado, acredito que a tecnologia contribui para amplificar a boa prática dos médicos em seu dia a dia. O uso constante da internet por meio do celular e o interesse por parte das pessoas em ter cada vez mais acesso a informações relacionadas à saúde mostram que os pacientes estão abertos a novas formas de comunicação. Apesar de muitos médicos e pacientes já terem uma relação além do consultório, tirando dúvidas e aumentando a assistência, esse número ainda pode ser maior. Com as informações certas, médicos podem e devem usar os recursos disponíveis em smartphones para terem mais contato com seus pacientes. O fenômeno internet é diferente da TV e rádio porque, nesses, o telespectador é meramente passivo, enquanto em relação à internet, o receptor participa selecionando e emitindo informações. Enfim, os médicos estão deixando de ser os detentores supremos do saber e passam a ser questionados por pacientes cada vez mais informados. A porta de entrada costuma ser o site de buscas Google. A partir dele, mergulham em sites especializados e blogs. Estima-se que metade dos pacientes chega ao consultório trazendo informações da internet. O médico tem de considerar que o paciente tem a informação, e o paciente tem de considerar que o médico, além da informação, tem a formação, ou seja, a habilidade de aplicar a informação. Mas precisamos de discernimento para entender que o vínculo médico x paciente tem de ser maior quando encontrar olhar no olhar.
Que dicas você dá aos médicos para trabalhar a empatia com os pacientes?
Se você gosta de adrenalina, pense em uma médica perguntando sobre os exames para os funcionários: “E aí, é só um nódulo?”, “tenho metástase?”. Esse foi realmente um dos momentos mais tensos. É muito difícil esperar o resultado de exames. Hoje, compreendo melhor meus pacientes e seus pais, e meu comportamento é muito diferente. Isso é uma coisa que quero passar aqui para meus colegas de medicina. Gostaria que todos entendessem como é ser um paciente. A espera pelo resultado do exame é pior que o resultado em si. Portanto, olhe nos olhos de seus pacientes, não tente enganá-los. A gente percebe a mentira, a pena. Não sinta pena de nós, cuide de nós. Exerça apenas o papel de cuidador e profissional da saúde e não se esqueça de seguir as regras e protocolos. Durante meu tratamento, pude ver vários profissionais que não levavam esses aspectos em consideração. Também vi o contrário, muitos exercendo adequadamente sua função. E por isso ainda tenho esperança.
Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 88, de novembro/dezembro de 2017. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-88-revista-hospitais-brasil