Por Carol Gonçalves
O Brasil é um país de mentes brilhantes e criativas, sim, mas está longe de ser uma potência mundial quando se fala em inovação. Apesar de melhorar cinco posições no Índice Global de Inovação em 2018 em relação ao ano anterior, o 64º lugar não é lá muito animador.
Entre as áreas nas quais o país se destacou estão gastos com P&D, importações e exportações líquidas de alta tecnologia; qualidade de publicações científicas; e universidades. No entanto, faltam investimento, incentivo, apoio e políticas públicas.
Esses dados ratificam nosso complexo de vira-lata, mas eu não escrevo essa matéria para me lamuriar e nem falar mais do mesmo. Já estamos exaustos de criticar por criticar. Eu quero é falar do que está dando certo, do que aquece o coração e renova as esperanças na humanidade – e também colaborar para que a área de inovação, principalmente em saúde, ganhe maior destaque na mídia.
Recentemente, conheci o LAIS – Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, localizado em Natal. O professor Ricardo Valentim, coordenador do laboratório, participou de um evento em São Paulo falando sobre ciência humanitária. Muito mais que emocionante, a palestra foi transformadora.
Segundo ele, a pesquisa e a inovação precisam acontecer em função das pessoas. “O desafio é pensar em tecnologia, educação e economia de forma humanitária, partindo de um problema que a sociedade precisa resolver, não é gerar riqueza para pequenos grupos”, disse. E nós, brasileiros, podemos ser os melhores nisso porque temos: problemas, vocação para fazer o bem e mentes brilhantes.
Para Valentim, não basta desenvolver uma nova tecnologia, é preciso entender o todo e compreender como ela poderá impulsionar o cuidado à saúde. “O verdadeiro capitalismo é humanitário. Sem essa essência, é somente um passivo social que consome a dignidade humana, portanto, é incapaz de produzir bem-estar”, ressaltou.
Parece utopia, mas não é. O LAIS prova que isso é realidade através de seus mais de 100 projetos, mais de 275 mil alunos extensionistas e mais de 200 pesquisadores, desde sua fundação, em 2011. Sua missão é “fazer da ciência um instrumento de amor ao próximo, tendo como objetivo a cidadania, o bem-estar social e o desenvolvimento da área da saúde no Brasil por meio da inovação”.
Funcionando no HUOL – Hospital Universitário Onofre Lopes, o LAIS é o primeiro laboratório instalado em um hospital brasileiro com a proposta de promover a inovação tecnológica em saúde. Entre suas atividades está a realização de projetos de Bioengenharia, Tecnologias Assistivas, Informática para a Saúde e Educação Permanente em Saúde, além de publicações de artigos científicos em livros e periódicos, frutos das pesquisas de dissertações e teses realizadas pelos seus pesquisadores.
Após a palestra em São Paulo, fui convidada a participar da 2ª Conferência Internacional de Inovação em Saúde (CIIS), realizada pelo LAIS, em Natal (RN), entre os dias 30 de outubro e 10 de novembro. O tema principal foi “A importância da Inovação Tecnológica em Saúde para os países em desenvolvimento”, com base nos ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável contidos na Agenda 2030 da ONU – Organização das Nações Unidas.
“Para além de sua reconhecida dimensão social e de cidadania, a saúde também constitui área estratégica para o desenvolvimento econômico e a transformação produtiva. No Brasil, a saúde representa demanda nacional de 10% do PIB, ocupa o 8º lugar no mercado mundial, emprega 1/3 dos trabalhadores qualificados do país e representa 35% do esforço nacional de P&D (área de maior crescimento do esforço de inovação). Além disso, ela abrange plataformas tecnológicas estratégicas para o futuro do país, como biotecnologia, química fina, equipamentos médicos, tecnologia da informação e telemedicina, nanotecnologia, novos materiais, entre outras. A interação entre a cadeia produtiva, a comunidade científica e os serviços de saúde gera um ambiente propício à inovação, com atuação sistêmica e voltada ao desenvolvimento e à inclusão social”, declarou Valentim, no material de divulgação do evento.
Destaques
Uma das surpresas na cerimônia de abertura do CIIS foi a palestra do Dr. Hemerson Casado, ativista e médico alagoano que tem ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica. Devido à doença, ele já não fala, não anda e praticamente não se mexe. Para interagir com as pessoas, utiliza o dispositivo de comunicação Tobii, com tecnologia de rastreamento ocular.
Sua palestra só foi possível devido ao uso do DSpeech, um aplicativo que converte texto em fala e que “leu” o material “escrito” pelo médico. Em sua apresentação, Dr. Hemerson destacou a importância de aproximar a produção acadêmica e pesquisas científicas das necessidades da população, com foco na inovação. “O conhecimento ajuda a desenvolver novas tecnologias para resolver problemas de ordem prática. A partir de novas descobertas temos a possibilidade de tomar decisões informadas, quer individualmente, quer coletivamente”, expôs.
Para ele, a falta de planejamento estratégico está atrasando o desenvolvimento do país, apesar do aumento na produção científica nos últimos anos. “Precisamos aproximar mais a academia dos interesses e necessidades da sociedade brasileira. Temos de fazer uma lista de prioridades de áreas do conhecimento, que atendam diretamente aos interesses do nosso povo, temos de fazer com que governo federal, terceiro setor e iniciativa privada aumentem os investimentos na ciência e principalmente na tecnologia, que é na prática a aplicação da ciência”.
Sobre doenças raras, Dr. Hemerson disse que, do ponto de vista científico, elas são negligenciadas pela medicina, pela academia e pelo principal agente financiador da ciência no Brasil, que é o governo. “Toda essa negligência vem na ponta final com gastos mirabolantes com medicamentos para doenças raras, na compra de tecnologia assistiva e tecnologia para diagnóstico, equipamentos para pesquisas e insumos estratégicos. Temos de mudar paradigmas”, relatou. E finalizou com um pensamento de Rousseau: “O homem que não conhece a dor, não conhece a humanidade”.
Outra surpresa foi a transmissão em primeira mão do documentário “Olhares: Educação em Saúde para transformar o futuro”. O vídeo mostrou como o brasileiro Rafael Silva, técnico de informática e missionário da Jocum – Jovens com uma Missão, está modificando a realidade de centenas de pessoas de Morogoro, cidade do interior da Tanzânia, através de cursos de educação a distância produzidos pelo LAIS.
“Quando estava em São Paulo, encontrei o AvaSUS – Ambiente Virtual de Aprendizagem do SUS. Nele havia um curso para agente comunitário da saúde com uma linguagem muito simples, que se encaixava no meu desejo de promover a melhoria de saúde das pessoas, não apenas oferecendo tratamento, mas também educação. Depois, fiz o curso on-line sobre endemias”, explicou Rafael no documentário.
O filme nos preenche e mostra do que somos capazes. “A gente passa, mas isso daqui fica. Essa é a verdade. É fazer algo que possa mudar, que não seja só tempo perdido”, finalizou.
Assista ao vídeo:
Conteúdo
A conferência reuniu gestores, pesquisadores, profissionais e estudantes das áreas da saúde, tecnologia e comunicação para discutir o processo de inovação no setor, com ênfase na força de trabalho e no desenvolvimento de novas tecnologias que possibilitem melhorar a qualidade do atendimento nas redes de atenção em saúde. Participaram representantes das principais instituições de pesquisa do mundo, como Harvard e MIT – Massachusetts Institute of Technology (Estados Unidos), Universidade de Lorraine (França) e Universidade de Atabasca (Canadá).
O conteúdo foi divido em palestras; conversas temáticas em seis sessões denominadas Café com Ideias; oficina sobre Recursos Educacionais Abertos e Curadoria em Saúde; Simpósio Satélite sobre Doenças Negligenciadas e Tecnologias; Simpósio Satélite sobre Sífilis e Tecnologias; e apresentação de trabalhos orais no formato pôsteres.
Um dos palestrantes foi Carlos Gadelha, coordenador das Ações de Prospecção da Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz, que abordou o tema “A agenda de desenvolvimento, inovação e saúde no contexto do complexo econômico industrial”.
De acordo com ele, as transformações políticas, sociais e institucionais acontecem junto com as transformações econômicas e nos sistemas produtivos e tecnológicos. “Países que investem pouco em inovação têm mais desigualdades sociais. Isso prova que há uma interdependência entre as bases econômica e social”.
Gadelha disse que não se pode mais pensar em atenção primária sem falar em tecnologia. No caso de tratar uma criança com zika, por exemplo, é preciso ter um sistema que faça o monitoramento da doença, que acompanhe o tratamento.
Para ele, o futuro da ciência é uma questão ético-política. Entre os desafios estão: sair da zona de conforto das instituições científicas e da evolução disciplinar; retomar o diálogo e o debate sobre ideias e conhecimentos em torno de valores comuns para a vida social; e sair da cultura dos pares, que aprisiona, para a cultura do diálogo, da crítica e da autocrítica.
“Desenvolvimento não é adição, é transformação. Não é fazer mais do mesmo, é fazer diferente, voltado às necessidade humanas. O SUS é a maior transformação da saúde dos últimos anos”, destacou.
Em outra palestra, Zachary J. Ward, analista do CHDS – Centro para Ciência Decisória em Saúde na Escola de Saúde Pública T.H.Chan da Universidade de Harvard, Estados Unidos, falou sobre “Modelagem de Sistemas de Saúde e Considerações sobre Dados: desafios para a Saúde Global”.
Ele contou que, na Tanzânia, onde desenvolveu um trabalho, foi verificada, através de dados, a alta mortalidade materna. Como grande parte dos partos eram realizados fora do hospital, o governo agiu incentivando o parto hospitalar. No entanto, a mortalidade continuou. Com isso, Ward mostrou a importância da análise correta dos dados: o campo de ação para reduzir a mortalidade não estava em dar à luz no hospital.
O analista ressaltou que qualquer dado é melhor que nenhum, mas é preciso saber como eles foram gerados e adotar mudanças a partir deles, não basta, por exemplo, apenas prever uma doença cardíaca se não há planos de ação para tratar o caso e gerar mudanças.
Projetos
Também fez parte do CIIS uma instalação que abrigava alguns dos projetos do laboratório. Através de uma tela touch e de fones de ouvido, os interessados podiam assistir a matérias veiculadas na mídia sobre o desenvolvimento e o funcionamento de cada solução.
Depois, tive a oportunidade de conhecer o LAIS, onde tudo acontece. Os projetos são divididos em temáticas: Gestão e Informática na Saúde; Informação, Formação e Educação Continuada em Saúde; e Assistência.
Um deles é o Osseus, método baseado em inteligência artificial e ondas eletromagnéticas para o diagnóstico auxiliar de doenças osteometabólicas. Trata-se de um dispositivo portátil de fácil operação, cujo princípio é ser de baixo custo. Isso permite um alto fator de escalabilidade, o que potencializa o seu uso em qualquer lugar do Brasil. “Ele é 100 vezes mais barato que o convencional e 20 vezes mais rápido no diagnóstico”, disse Agnaldo Souza Cruz, pesquisador do LAIS desenvolvedor da solução. Uma densitometria óssea, que permite o diagnóstico precoce, determinando o início do tratamento e a prevenção de fraturas, ainda é um exame de alto custo e de difícil acesso para a população, disponibilizado somente na alta complexidade ou na rede especializada.
O exame realizado pelo Osseus não é invasivo e pode ser aplicado diversas vezes em intervalos de tempo menores, pois não há nenhum efeito colateral para os pacientes, diferente de outros métodos tradicionais. A solução foi validada pelos pesquisadores do LAIS em parceria com pesquisadores do MIT, Estados Unidos.
Outra solução do laboratório, a plataforma OpenPacs, foi criada para resolver um problema recorrente dos hospitais brasileiros: armazenar e gerenciar imagens médicas. Trata-se de uma suíte de ferramentas que, na prática, permite o arquivamento de exames, como raios X, ressonância magnética e tomografia computadorizada em um só lugar. O sistema foi desenvolvido para o HUOL em 2012 e, desde a sua criação até o ano de 2017, já armazenou mais de 200 mil exames.
Por sua vez, a Plataforma ObservaSUS, também desenvolvida no LAIS, é aplicada ao monitoramento dos dados relacionados à saúde no Brasil, levando em conta quatro dimensões: econômica, social, demográfica e de saúde. A partir dela é possível estudar, pesquisar, analisar e discutir políticas públicas de saúde com foco nos impactos sobre os serviços de saúde, por exemplo, analisar a capacidade de resiliência do sistema para determinados eventos políticos, demográficos e econômicos.
Mais uma solução do LAIS de fundamental importância para o setor é o Portal Saúde Baseada em Evidências (www.psbe.ufrn.br), uma biblioteca eletrônica com conteúdos específicos para profissionais de saúde. A iniciativa foi da SGTES – Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, em parceria com a CAPES/MEC – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
O conteúdo está disponível a profissionais e estudantes da área da saúde. No caso dos profissionais, o acesso é definido pelo seu vínculo com o respectivo Conselho Profissional, em 14 áreas: Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Serviço Social.
Na área odontológica, um dos projetos de destaque é o “Saúde Bucal Sem Dor”. Seu objetivo é eliminar o maior problema da área: o medo de ir ao dentista devido ao barulho emitido pela caneta de alta rotação e o aquecimento provocado pelo laser. A ideia é utilizar uma caneta de plasma à pressão atmosférica, mais conhecido como plasma frio, em tratamentos dentários. Esse material possui grande aplicação na área biomédica por ter grande capacidade de esterilização, por ser usado em procedimentos com materiais sensíveis à temperatura e, o mais importante, sem causar danos às superfícies biológicas e dor ao paciente. O plasma frio atua ainda na aceleração do processo de coagulação, estimulação celular, clareamento dental e tratamento endodôntico.
Mais tarde, em uma conversa informal, me contaram que Valentim não permite que ninguém estude por estudar. Todos os projetos desenvolvidos no LAIS precisam sair no papel e atender a uma necessidade social. Isso é, no mínimo, respeito pelo investimento público!
Todas as soluções podem ser conferidas no site lais.huol.ufrn.br/category/projetos.
Sífilis Não
Uma das maiores lutas do laboratório é contra a sífilis, doença sexualmente transmissível que se tornou epidemia no país nos últimos anos. Dados do Boletim Epidemiológico da Sífilis 2018 do Ministério da Saúde apontam aumento na taxa de detecção da sífilis adquirida, que passou de 44,1 casos em 2016, para 58,1 em 2017, a cada 100 mil habitantes. No mesmo cenário verificou-se que a doença em gestante cresceu de 10,8 casos em 2016 para 17,2 em 2017, a cada mil nascidos vivos. Já a sífilis congênita, passou de 21.183 casos em 2016, para 24.666 em 2017. O número de óbitos foi de 206 casos em 2017, enquanto em 2016 foram 195.
Foi observando esses dados que o LAIS, o Ministério da Saúde e a OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde iniciaram um projeto que prevê ações efetivas e pesquisa aplicada, inicialmente, em 100 municípios do país: “Resposta Rápida à Sífilis nas Redes de Atenção”, também chamado de “Sífilis Não”. São quatro eixos distintos: gestão e governança, vigilância, cuidado integral e fortalecimento da educação e comunicação. Também estão sendo desenvolvidas ações de Educação Permanente em Saúde, visando à capacitação de gestores e profissionais da área. O projeto pretende eliminar a sífilis congênita e controlar a sífilis adquirida e em gestantes no território brasileiro.
No dia 29 de outubro, foi realizada a abertura da Oficina sobre Apoio em Pesquisa e Intervenção do Projeto Sífilis Não. Além dos 52 apoiadores de Pesquisa e Intervenção que atuam em todo o Brasil, participaram supervisores do projeto e superintendentes de hospitais universitários do Rio Grande do Norte.
Já no segundo dia do CIIS, foi realizada a Ação de Testagem Rápida para Sífilis, uma iniciativa do NESC/UFRN – Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, em parceria com o LAIS.
O assunto é tão sério que de 2 a 4 de novembro foi realizado o HackLAIS – Brasil Sem Sífilis, também em Natal.
Encerramento
Debates valorosos aconteceram durante o CIIS, promovendo a integração entre os diversos atores do sistema de saúde, permitindo a troca de ideias e a demonstração de soluções fundamentais para lidar com os desafios do setor, sempre tendo o bem-estar do ser humano como objetivo principal.
Em seu discurso de encerramento, Angela Paiva, reitora da UFRN, disse: “A ciência humanitária é a ciência para cada um de nós, sem deixar ninguém para trás”.
E, assim, com o entusiasmo renovado, voltei para São Paulo, cheia de ideias e ciente da minha capacidade de transformação. Espero ter passado um pouco disso aos leitores.
Conteúdo originalmente publicado na Revista Hospitais Brasil edição 94, de novembro/dezembro de 2018. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-94-revista-hospitais-brasil