Em uma semana, na quarta-feira (8), o Superior Tribunal de Justiça retoma, em definitivo, o julgamento que pode afetar mais de 49 milhões de usuários de planos de saúde e definir a extensão da lista de cobertura dos procedimentos e tratamentos publicada pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
O julgamento é decisivo para as pessoas que utilizam esse serviço, as quais podem ter o acesso de tratamentos e medicamentos negados pelas operadoras, tendo que arcar sozinhas com os custos.
“Trata-se de estabelecer a nova e perigosa interpretação de que o Rol de Procedimentos e Eventos da ANS é taxativo e não exemplificativo, como compreende hoje a maior parte da jurisprudência”, explica Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec.
Desde a aprovação da Lei de Planos de Saúde, em 1998, o rol de procedimentos foi interpretado pela Justiça como exemplificativo, ou seja, a lista de procedimentos cobertos pelas operadoras é considerada referência mínima. Segundo esse entendimento, a cobertura vai além de seu conteúdo listado, incluindo, eventualmente, outros procedimentos prescritos por médicos que tenham eficácia comprovada. Em oposição, há o entendimento das empresas de que o rol seria taxativo, que delimita a lista de coberturas, não dando margem a outras interpretações.
A limitação da cobertura com o rol taxativo coloca as pessoas usuárias desse serviço em situação de extrema vulnerabilidade diante das operadoras de plano de saúde. O acesso a tratamentos e medicamentos, hoje protegidos pela Lei de Planos de Saúde e pelo Código de Defesa do Consumidor, pode ser negado, mesmo decorrente de prescrições médicas.
“A mudança dessa interpretação, como propõem a ANS e as operadoras, colocaria todo o sistema em uma situação de insegurança. Tratamentos diversos poderão ser negados a famílias com respaldo jurídico e o problema repercutirá também no sistema público de saúde com mais sobrecargas”, afirma Navarrete. E completa: “O rol taxativo significa um retrocesso para os direitos conquistados em 1998”.
Justificativas controversas
O julgamento do caso no STJ teve início em setembro de 2021, mas foi interrompido no mesmo dia por um pedido de vista da ministra Nancy Andrighi. O relator da matéria, o ministro Luis Felipe Salomão, manifestou-se e, em seu voto, acolheu o argumento das operadoras de que coberturas mais amplas gerariam desequilíbrio financeiro no setor.
Porém, nos últimos 10 anos em que vigorou o entendimento pelo rol exemplificativo, o setor cresceu como um todo. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2014 a 2018, os lucros das empresas mais que dobraram. Além disso, a saúde suplementar foi um dos poucos setores que elevou seus ganhos durante a pandemia.
“Os argumentos de equilíbrio econômico das empresas são descabidos, como mostram os números da ANS, e não sustentam o argumento de colapso econômico comumente utilizados em prejuízo da saúde dos pacientes”, diz Navarrete.
Em fevereiro de 2022, o julgamento foi retomado no STJ e a ministra Nancy Andrighi abriu divergência dos argumentos de Salomão. Andrighi sustentou que a ANS não tem a prerrogativa de limitar o alcance das coberturas, quando a própria lei que regula o setor não o faz. A ministra também defendeu que o rol exemplificativo dá proteção ao consumidor contra a exploração predatória das empresas. Além disso, ela ainda utilizou dados do Ipea e da própria ANS para contestar a afirmação de que a manutenção do atual modelo encareceria as mensalidades dos planos.
A proteção de todos os consumidores em jogo
O Idec, enquanto instituição que luta pelos direitos de consumidores e que acompanha de perto o caso há anos, considera a mudança no caráter do rol um imensurável retrocesso aos direitos conquistados há mais de 20 anos.
Se considerado taxativo, não haverá vitórias para a população, mas prejuízos sem precedentes em benefício de interesses estritamente financeiros por parte de empresas privadas – e com amparo jurídico.
A instituição conclama o STJ a reiterar o entendimento histórico da própria Corte e de todos os tribunais do Brasil, que são predominantemente favoráveis à interpretação do rol exemplificativo. Para o Idec, é obrigação do Poder Judiciário garantir regras justas, que protejam todos os 49 milhões de usuários de planos de saúde – sejam eles pessoas com deficiências, autistas, com transtornos ou não – diante do interesse das empresas em reduzir suas obrigações e gastos assistenciais.
Caso contrário, o cenário será irreversível e os impactos serão múltiplos. E a ANS precisará arcar com as consequências de sua perda de credibilidade perante a sociedade de protegê-la e de fiscalizar os excessos das operadoras.