Desde 1950, a expectativa de vida da mulher dobrou em todo o mundo. Porém, o mesmo ritmo não foi observado em relação à expectativa de vida saudável, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que impacta diretamente na garantia de vidas femininas longas e sadias. No Brasil, as mulheres representam 51,1% de toda a população e quase 70% de todos os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021 e 2019, respectivamente. Superando barreiras históricas, o setor tem deixado de olhar apenas para a questão reprodutiva e ampliado o cuidado para atendimentos que contemplam desde a saúde ginecológica à saúde mental, abordando todos os aspectos multifatoriais que abrangem o tema.
Tais serviços já são oferecidos amplamente em todo o país no setor público e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), do Ministério da Saúde, atua com um olhar 360°, com foco em todo o ciclo de vida da mulher, com iniciativas que visam embasar a elaboração de políticas públicas que forneçam profissionais cada vez mais capacitados, atendimentos mais humanizados, melhores diagnósticos e melhores tratamentos a todas as mulheres, de todas as classes sociais, em todos os estados brasileiros.
Entre os projetos desenvolvidos, destacam-se estudos pioneiros na América Latina relacionados ao HPV, com o objetivo de atuar na erradicação do câncer de colo uterino, além do estudo de novos procedimentos para o tratamento do carcinoma; pesquisas inéditas sobre o comportamento de jovens e adultos brasileiros, incluindo mulheres grávidas, relacionadas a Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), como sífilis, HIV e HTLV; além de oferecer a capacitação a profissionais do SUS de todas as regiões do país para garantir maior agilidade no diagnóstico e tratamento de pacientes com endometriose, atuando diretamente para romper com a normalização da dor; e avaliar, também pela primeira vez, a saúde mental e o impacto econômico da gravidez na adolescência.
Ampliação do acesso ao tratamento de endometriose e desmistificação da dor
A pedagoga especialista em educação especial, Cristina Aparecida Silva Zardo, de 45 anos, conviveu por quase três décadas com o sofrimento causado pela endometriose, sem tratamento adequado, por ter recebido um diagnóstico de miomas uterinos. Após sua primeira gravidez, aos 18 anos, surgiram cólicas menstruais mais intensas e que não cessavam com auxílio de analgésicos ou anticoncepcionais – um tratamento recomendado sem a realização de exames para diagnosticar as dores. Neste intervalo, os sangramentos menstruais se intensificaram tanto, que a pedagoga desenvolveu anemia e passou a sofrer com frequentes desmaios, a ponto de precisar parar de trabalhar. Em 2021, chegou a passar por transfusão de sangue e começou a tomar progesterona injetável a cada três meses, o que apenas piorou os sintomas.
“Em plena pandemia, as visitas ao Pronto Socorro se intensificaram, enquanto eu ouvia dos médicos que meus sintomas eram ‘coisa de mulher’, que era ‘só tomar um analgésico e me deitar com as pernas para cima’ que passava. Eu não tinha qualidade de vida e basicamente esperava o dia de o meu coração parar de bater, de tão fraca que estava. Até que veio o diagnóstico de endometriose e me disseram que eu teria que passar por uma cirurgia de retirada completa do intestino e usar bolsa de colostomia. Foi mais um baque”, relata.
No entanto, enquanto aguardava na fila de espera pela cirurgia no Complexo Hospitalar Heliópolis, em São Paulo, capital, Cristina foi contemplada pelo projeto Endometriose Brasil, realizado pela BP – a Beneficência Portuguesa de São Paulo no Âmbito do PROADI-SUS, que atende pacientes SUS durante a capacitação de cirurgiões especializados de 5 regiões do Brasil, além da capacitação de mais de 40 mil profissionais para ampliar o acesso ao tratamento e garantir atendimento de qualidade. “Do primeiro contato até a realização da cirurgia, foi muito rápido: menos de um mês. Passei por retirada do útero e das trompas, mas mantiveram os meus ovários, meu intestino e toda a estrutura abdominal, o que quase não aconteceu. O mais importante é que, já na recuperação, foi como tirar a dor com a mão: no dia seguinte todo o inchaço abdominal, a dor cervical e a dor pélvica diminuíram expressivamente, ficando apenas o desconforto pós-cirúrgico”, relata.
A pedagoga passou pelo procedimento em 26 de novembro de 2022 e está prestes a receber alta. Entre os planos, agora, estão voltar a trabalhar e a fazer atividades físicas. “O projeto Endometriose Brasil salvou a minha vida. Eu não tinha perspectiva de cura, de tratamento e de vida. Esta é uma certeza que tenho hoje, o projeto me trouxe vida novamente, do início ao fim”.
De acordo com o especialista em saúde da mulher e referência mundial em endometriose, Dr. Maurício Abrão, ginecologista da BP e coordenador da iniciativa, o caso exemplifica a história de mais de 7 milhões de brasileiras, até 10% das mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo. “E é um problema que requer, muitas vezes, uma simples laparoscopia (cirurgia minimamente invasiva) não só para o diagnóstico, como para o tratamento efetivo com a retirada dos focos da doença. É por isso que o Endometriose Brasil é uma iniciativa única, pioneira e importantíssima, que pode servir de modelo para o mundo inteiro”, afirma.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2021, mais de 26,4 mil atendimentos foram feitos no SUS, quando também foram registradas oito mil internações pela doença, cujo diagnóstico leva anos para acontecer, comprometendo a qualidade de vida da paciente, podendo comprometer a fertilidade e causar dores durante as relações sexuais. “Ter dor não é normal. Isso é algo extremamente importante e os médicos precisam dar ouvido às pacientes, enquanto as pacientes precisam procurar assistência. Iniciativas como esta, de capacitação, deixam um legado, porque ensinam o profissional a olhar para o SUS, para pacientes muitas vezes vulneráveis”, conclui o especialista.
Erradicação do câncer de colo uterino e eliminação de Infecções Sexualmente Transmissíveis
A transmissão do papilomavírus humano (HPV) é outra questão de saúde pública feminina em que o PROADI-SUS atua intensamente, seguindo a estratégia global da OMS para a Eliminação do Câncer de Colo do Útero (causado pela IST), endossada pela Assembleia Mundial da Saúde em 2020, que pede que 70% das mulheres em todo o mundo sejam examinadas regularmente para doenças cervicais com um teste de alto desempenho e que 90% delas recebam tratamento adequado, além de alcançar a meta vacinal de 90% na população alvo, composta por meninos e meninas de 9 a 14 anos. Trata-se do terceiro tumor mais incidente nas brasileiras, sendo os papilomavírus tipos 16 e 18 responsáveis por, pelo menos, 70% dos cânceres cervicais em todo o mundo.
No final de 2022, o Hcor iniciou o estudo AddChemo-CC Trial, que parte de uma tecnologia inédita no SUS, de alto padrão e baixo custo: a biópsia líquida. O projeto avalia a eficácia da quimioterapia para alcançar a cura de mulheres com diagnóstico de câncer de colo de útero localmente avançado que apresentem persistência do DNA viral no sangue após o tratamento padrão com radioquimioterapia. Esse exame é realizado pelo Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), em parceria com o hospital e o PROADI-SUS.
“O câncer do colo do útero constitui um sério problema de saúde pública nos países em desenvolvimento, devido às altas taxas de incidência e mortalidade, constituindo a terceira causa de morte por câncer feminino no Brasil. Esses aspectos podem dar a dimensão da importância dessa patologia e deste projeto no cenário nacional, tendo em vista que cerca de 70% dos casos desse câncer são diagnosticados, no Brasil, em fase avançada, o que compõe o perfil das pacientes selecionadas para o estudo”, ressalta Dra. Michelle Samora, pesquisadora principal do estudo AddChemo-CC Trial, sobre o impacto do projeto na saúde da mulher.
Também nesta temática, o Hospital Moinhos de Vento desenvolve desde 2015 os estudos POP-Brasil e SMESH, que avaliam 15 mil homens e mulheres, entre 16 e 25 anos, sexualmente ativos para determinar o impacto da vacinação contra o HPV, além da prevalência da doença e fatores associados à infecção em populações específicas, como em trabalhadoras do sexo e gays/homens que fazem sexo com homens (HSH), respectivamente – um dos maiores projetos da América Latina, com ação pioneira em toda a região em relação à vigilância destes fatores.
A epidemiologista e coordenadora dos estudos, Dra. Eliana Márcia Da Ros Wendland, ressalta que a vacina ainda é a melhor medida para eliminar o câncer de colo uterino, na medida em que atua diretamente na prevenção primária. A especialista é categórica ao afirmar: “Essa doença não precisava mais existir. Mas, ainda temos casos de mulheres sendo acometidas e morrendo por causa disso. Uma mulher que se submete ao tratamento de forma tardia fica com uma série de sequelas que afetam diretamente na sexualidade e fertilidade, como atrofia vaginal, o que vai causar dor na relação sexual, vai causar menopausa precoce por ter que tirar útero e ovário. No Brasil, ainda não existe o rastreamento de HPV como política pública, mas o PROADI-SUS busca trabalhar com estes projetos para oferecer a melhor maneira de introduzir isto”, ressalta.
Wendland ainda afirma que a grande quantidade de casos de HPV está relacionada ao comportamento geral da população, o que também se reflete nos casos de sífilis, HIV, HTLV e hepatites B e C, o que deve ser olhado sob diferentes aspectos: prevenção do câncer, saúde sexual e transmissão vertical (quando ocorre da mãe para o filho, ainda na gestação). Ela também coordena o estudo PRISMA – Prevalência de HTLV e outras IST e padrões de comportamento sexual em parturientes no Brasil, que avalia a prevalência de IST na gestação em 32 mil mulheres em todo o país, avaliando infecções como HIV, sífilis, hepatites B e C e HTLV, um vírus ligado ao desenvolvimento de leucemia das células T do adulto; além do Atitude, que estuda os conhecimentos, atitudes e práticas da população geral relacionados a essas doenças, com foco no Rio Grande do Sul.
“Falamos de IST que ainda são estigmatizadas, o que fica ainda mais latente quando se trata de uma mulher, por diversos fatores. Quando superam a vergonha e fazem o tratamento, muitas vezes são reinfectadas por seus parceiros, ou são agredidas por eles no momento em que revelam o diagnóstico, principalmente se estiverem grávidas. Ou seja, a mulher carrega uma carga emocional de culpa muito maior nestes casos. Até mesmo por isso é tão importante a condução de pesquisas que contribuam para políticas públicas que efetivamente informem e eduquem a população quanto à sexualidade e doenças transmissíveis”, diz.
O impacto na saúde mental da gravidez na adolescência
Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), da OMS, revelaram que as adolescentes de 15 a 19 anos apresentaram a segunda maior taxa de fecundidade no mundo inteiro entre os anos de 2010 e 2015. Em 2019, no Brasil, segundo o DATASUS, 14% dos nascidos vivos (399.922/2.848.662) foram de gestação com mães da mesma faixa etária, considerada de alto risco para as gestantes, fetos e recém-nascidos. Além disso, foram registrados 19.330 nascidos vivos em gestações com meninas entre 10 e 14 anos de idade, enquanto a mortalidade materna atingiu quase o dobro da média mundial apesar dos esforços realizados para reduzi-la.
O pediatra Tiago Chagas Dalcin, que coordena o projeto Adolescentes Mães, também conduzido pelo Moinhos de Vento no âmbito do PROADI-SUS, afirma que o tema é um desafio preocupante à saúde pública em todo o mundo e que desperta uma importante discussão em torno da educação sexual da população em paralelo à compreensão das condições sociais em que estas meninas estão inseridas. “A maioria das soluções que se tenta, foca muito na adolescente e esquece que é uma questão mais complexa e exige medidas mais abrangentes, visto que a sociedade inteira lida com esta questão. É claro que a adolescente precisa ser envolvida e como protagonista. Agora, precisamos lembrar sempre que é uma questão sistêmica, fruto da sociedade em que estamos inseridos. São diversos os fatores que precisam ser levados em consideração: a condição socioeconômica, bem como a rede de apoio, vai impactar na qualidade de vida da mãe e do bebê; a violência de gênero, que é algo muito presente na nossa sociedade; a diferença alarmante entre dois subgrupos de adolescentes – 10 e 14 anos incompletos e 15 e 20 anos incompletos, visto que existe legislação reforçando que, entre 10 e 14 anos incompletos, a relação sexual é considerada estupro de vulnerável .Ao mesmo tempo, é preciso quebrar o tabu de que falar sobre educação sexual é estimular uma vida sexual ativa”, afirma.
O especialista coordena uma pesquisa inédita no Brasil sobre a vulnerabilidade da gestação precoce com foco na saúde mental de mil adolescentes e mulheres de 10 a 19 anos de idade, com olhar também voltado à saúde da criança, com o objetivo de impactar diretamente na elaboração de políticas públicas para medidas de intervenção eficazes. “Ainda não existe uma pesquisa dessa dimensão focada em ouvir o que as mães têm a dizer sobre a sua saúde e as questões relacionadas a gravidez, por isso este projeto é tão inovador. Ele irá aumentar e qualificar as evidências científicas sobre o tema e irá embasar as ações futuras com dados mais próximos da realidade da população brasileira”, conclui Dalcin.
Ainda, o projeto está capacitando os profissionais que atuam na Atenção Primária à Saúde (APS), do Brasil inteiro, com o auxílio de 20 horas de aulas oferecidas na modalidade de educação a distância (EAD) e materiais informativos desenvolvidos por especialistas do Moinhos de Vento.