Aborto, uma questão de saúde pública

Na luta pela descriminalização do aborto, a primeira pergunta que vem à cabeça é ‘você é a favor ou contra o aborto?’.

A pergunta em si é um grande equívoco, pois não se trata de ser ‘a favor ou contra’ o aborto, mas sim que a decisão por interromper uma gestação seja seguida de acesso a um procedimento seguro, sem colocar a vida da mulher em risco e que esta não seja, por isso, penalizada com detenção de um a três anos.

Assim, é possível ser pessoalmente contra a prática do aborto, mas nem por isso condenar a penas de reclusão a mulher que, por razões pessoais, opte por interromper uma gestação indesejada. Manter a legislação atual é colocar a vida da mulher em risco, resultando em cerca de 270 mortes/ano.

“O aborto é um ato de responsabilidade da mulher, pois sobre ela recairá a responsabilidade daquela criança, caso a gestação seja mantida”, explica Dr. Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) e membro da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista por Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO).

“Nenhum Estado ou lei no mundo deve obrigar uma mulher a ter um filho indesejado. Cada um tem suas ponderações, valores éticos e morais, que devem ser respeitados.”

Neste dia 28 de setembro, Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto, o Grupo de Estudos sobre o Aborto – GEA destaca a importância de se debater o assunto e buscar conscientizar a população de que a descriminalização do aborto não obriga nenhuma mulher a interromper a sua gestação, tampouco transformará o procedimento em método anticoncepcional.

“A mulher não escolhe o aborto como forma de contracepção. É uma decisão difícil, sofrida. O aborto é visto pelas mulheres como a melhor opção dentre as piores opções que ela tem”, revela a psicóloga Daniela Pedroso, membro do GEA e do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington – SUS/SP

Consequências da descriminalização

A descriminalização do aborto já é uma realidade em diversos países que, em comum, registraram a queda na realização dos procedimentos.

A mais recente constatação aconteceu em Portugal, onde antes da descriminalização eram realizados cerca de 20 mil abortos. Logo após a mudança na legislação, em 2008, houve pequeno crescimento na quantidade de abortos, mas desde 2011 registra-se a diminuição. Em 2016, houve 15.416 abortos a pedido da mulher.

Esta queda do número de procedimentos acontece, principalmente, porque uma vez legal, o aborto é realizado em meio a um atendimento multidisciplinar, com aconselhamento contraceptivo inclusive. Nesta oportunidade, são oferecidos métodos de contracepção de longa duração.

Assim, 94,5% das mulheres que se submeteram ao aborto por opção em Portugal, escolheram uma forma de contracepção após o procedimento. Dessas, 39% escolheram um método de longa duração, como o DIU, implantes ou laqueadura, também oferecidos gratuitamente pelo governo.

Outra consequência direta da descriminalização do aborto é a queda da mortalidade materna. Em Portugal, que já teve o aborto como terceira principal causa de morte materna, desde 2011 não registra nenhum óbito relacionado à interrupção voluntária da gravidez.

O aborto na América Latina

De acordo com o estudo Abortion Worldwide 2017 – Uneven Progress and Unequal Acce, do Instituto Allan Guttmacher, a América Latina é, proporcionalmente, a região com maior número de abortos do mundo, reunindo 76% de todos os procedimentos. São cerca de 47,8 abortos para cada 100 mil nascidos vivos. No Brasil, essa taxa é ainda maior: 59,9 para 100 mil.

O aborto é totalmente proibido El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname.

Já Guiana, Guiana Francesa e Cuba permitem o aborto por qualquer motivo. Em Porto Rico, o procedimento é permitido até a 12ª semana. No Paraguai, Venezuela, Guatemala, Antígua e Barbuda e Dominica, o aborto é aceito apenas em caso de risco de morte da gestante.

No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 500 mil mulheres recorrem ao aborto inseguro todos os anos. Além das mortes em decorrência do procedimento realizado de maneira insegura, são registradas mais de 200 mil internações no Sistema Único de Saúde (SUS), ao custo aproximado de R$ 50 milhões anuais.

No Uruguai, o aborto até a 12ª semana é permitido desde 2012. No caso de estupro, permite-se até a 14ª semana. Em caso de risco de vida da mãe ou má formação fetal, é permitido a qualquer tempo.

“O Uruguai é um país latino e católico como o nosso, com uma série de questões sociais e dificuldades, mas conseguiu resolver este grande problema, que é a mortalidade materna em decorrência do aborto inseguro”, afirma o Dr. Thomaz.

O Chile aprovou, em setembro de 2017, uma lei autorizando o aborto nos casos de risco de morte para a mãe, inviabilidade do feto ou gravidez resultante de estupro. Trata-se de um avanço, considerando que o aborto era criminalizado sob todas as formas desde 1989, em meio à ditadura militar de Augusto Pinochet.

No México, a legislação depende de cada estado, contemplando, inclusive, penas de prisão em alguns deles. Na Cidade do México, no entanto, o procedimento é permitido até a 12ª semana.

A Colômbia merece destaque por prever o aborto em situações de estupro, risco de saúde da mãe, quando a vida do feto fora do útero não for viável, mas também quando há risco para a saúde mental da mulher. Foi lá que a brasileira Rebecca Mendes conseguiu a interrupção de sua gravidez, após ter o pedido de aborto legal negado pelo STF em dezembro de 2017.

Na Bolívia, que esteve a um passo de um grande avanço em sua legislação, deputados e senadores já haviam aprovado a ampliação do acesso ao aborto, incluindo risco de vida ou à saúde da mãe no futuro, caso a gestante fosse criança, adolescente, estudante ou já fosse responsável por outra pessoa, além dos casos já permitidos até então, de estupro, incesto ou risco de vida à mãe. No entanto, diante de protestos de parte da população, o presidente Evo Morales vetou o projeto no início deste ano.

Por fim, a vizinha Argentina poderia ter tido a melhor história de avanço deste ano. O projeto que descriminaliza o aborto nas primeiras 14 semanas de gestação, aprovado em 14 de junho na Câmara dos Deputados, garantiria o acesso ao procedimento tanto na rede pública quanto na privada. A lei precisaria ser aprovada pelo Senado e, em seguida, sancionada pelo presidente Maurício Macri. Após longa sessão, na madrugada de 9 de agosto, o projeto foi recusado por 38 votos conta, 31 a favor e duas abstenções dos senadores argentinos.

Na Argentina, assim como no Brasil, o aborto é uma das principais causas de mortalidade materna, levando a 50 mil internações em hospitais públicos. A atual legislação no país permite a interrupção da gravidez quando a vida ou a saúde da mulher estão em risco, se fruto de estupro ou de atentado ao pudor cometido contra uma mulher com deficiência intelectual.

O aborto nas eleições

Recentemente, o GEA enviou a todos os candidatos à presidência e também à imprensa uma carta aberta solicitando aos pretendentes ao Palácio do Planalto que incluam, em suas propostas de governo, seu posicionamento sobre a descriminalização do aborto.

Na carta, apresentou-se uma questão diretamente ligada à saúde da mulher, que pode prevenir e reduzir drasticamente a mortalidade materna: “O (A) senhor (a) é a favor da exclusão dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que definem como crime, punido com detenção de um a três anos, a interrupção da gravidez, tanto para a mulher, quanto para quem a ajuda a abortar?”

A pergunta trata da descriminalização do aborto, tema da audiência pública instaurada no Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dias 3 e 6 de agosto, que deve ser apreciada pelo plenário do STF, após a elaboração do voto da ministra Rosa Weber, relatora da ADPF 442.

Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSol), com consultoria da organização ANIS Instituto de Bioética, a ADPF pede que seja excluída do âmbito do crime a interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação, alegando a violação de diversos princípios fundamentais.

Segundo a ação, os artigos 124 e 126 do Código Penal ferem princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante, a saúde, o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos.

Redação

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