Leia abaixo na íntegra:
A crise imposta pela Covid-19 está sendo um desafio sem precedentes ao sistema de saúde brasileiro. Há um aumento de demanda por serviços especializados como emergências e unidades de terapia intensiva e como consequência também por insumos básicos como medicamentos, oxigênio, ventiladores mecânicos e equipamentos de proteção individual.
Apesar dos esforços de ampliação da rede de serviços emergenciais o agravamento da crise nos traz o inimaginável: o número de pessoas que precisam de ventiladores mecânicos e leitos de UTI é maior do que o sistema de saúde já em capacidade de contingência consegue acomodar, trazendo consigo o aumento do número de mortes tanto de pacientes portadores de Covid-19 quanto de pacientes portadores de outras doenças.
Diante dessa tragédia, decisões difíceis sobre como alocar recursos em esgotamento são inevitáveis e recaem sobre os profissionais da saúde que atuam na linha de frente do cuidado. A Associação Médica Brasileira (AMB) compreende que é de responsabilidade das sociedades científicas oferecer recomendações a esses profissionais sobre como continuar a conduzir suas missões de salvar vidas em situações de tamanha excepcionalidade.
A ausência de recomendações sobre como alocar recursos em esgotamento não só contribui com o aumento do número de mortes. Contribui também com o aumento na carga de estresse moral dos profissionais da saúde já esgotados após um ano de enfrentamento da pandemia e com a erosão da credibilidade dos serviços de saúde quando decisões são tomadas de maneira inconsistente, com critérios pouco claros ou eticamente questionáveis. Para ser eticamente defensível a alocação de recursos em esgotamento não deve ocorrer em segredo. Ao contrário, deve ser baseada em protocolos transparentes, tecnicamente bem embasados e alinhados ao arcabouço ético e legal brasileiro.
Com o objetivo de salvar mais vidas, defender a transparência e proteger os profissionais de saúde a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Associação Brasileira de Medicina de Emergência, Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e Academia Nacional de Cuidados Paliativos juntaram forças na elaboração das Recomendações de Alocação de Recursos em Esgotamento durante a pandemia de Covid-19. Este documento foi avaliado e aprovado pela Associação Médica Brasileira (AMB).
Essas recomendações foram desenvolvidas para serem seguidas apenas em momentos de crise, ou seja, quando mesmo as medidas de contingência estão sendo insuficientes para acomodar o aumento da demanda de recursos que estão se esgotando. São baseadas em procedimentos claros, transparentes, éticos, racionais, legais e técnicos, que tem o objetivo de proporcionar suporte e auxílio aos profissionais de saúde, que, no espectro de sua prática, deverão participar da tomada de decisões complexas relativas à alocação desses recursos. Por não serem recomendações apenas técnicas, a construção dessas recomendações consultou e ouviu a opinião de advogados, membros do judiciário, e bioeticistas como o objetivo de buscar uma maior legitimidade tanto normativa quanto técnica.
Em especial destacamos que o presente protocolo busca alinhamento com os critérios da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.156, de 28 de outubro de 2016 cujo racional normativo prioriza a oferta de vagas de UTI a pacientes com maior probabilidade de recuperação, recomendando que pacientes com baixa expectativa de recuperação e próximos da morte recebam, preferencialmente, cuidados paliativos. Além disso, o protocolo contribui com a aplicação da resolução em momentos críticos da pandemia ao oferecer critérios para a avaliação de probabilidade de recuperação, aliviando o profissional da linha de frente do peso emocional e moral dessa árdua tarefa e favorecendo uma maior consistência das decisões tomadas nos diversos contextos de atendimento.
O modelo de triagem reconhece que em situações de crise só é possível salvar o maior número de vidas se conseguirmos identificar os pacientes que tem mais chances de sobreviver ao receberem recursos em esgotamento. Para isso, utiliza dados relativos à gravidade do quadro agudo que o paciente apresenta, dados sobre a presença de doenças avançadas e dados relativos à funcionalidade (ou estado de saúde física) dos pacientes. Salienta-se que a idade dos pacientes não é utilizada como critério único de triagem. Comissões de triagem serão responsáveis por fazer a boa gestão do protocolo e de garantir sua transparência e correta aplicação. Pacientes que não forem priorizados devem ser submetidos diariamente a nova triagem se desejarem e devem continuar a receber todos os tratamentos apropriados que não estão em esgotamento, incluindo cuidados para o bom controle de sintomas como dor e dispneia (falta de ar).
Compreendemos, não obstante, que nenhuma recomendação dessa natureza deve ser lavrada em pedra; ao contrário devem ser mantidas sob a imprescindível premissa de aperfeiçoamento constante que é inerente ao espírito científico de sempre responder a novas informações e aos novos desafios sociais. O escrutínio público e das autoridades sobre um tema tão sensível deve continuar e será sempre bem salutar.
Devemos e desejamos poder prestar contas a sociedade sobre a necessidade excepcional de um processo de alocação de recursos em esgotamento para os momentos em que a capacidade de contingência foi superada. Ao mesmo tempo convocamos a todos a assumir a responsabilidade pela redução da transmissão da doença de maneira que o sistema de saúde possa oferecer a todos os pacientes os tratamentos que precisam sem necessidade de se fazer escolhas.
É com grande senso de responsabilidade, portanto, que a AMB é signatária do documento ‘Recomendações de Alocação de Recursos em Esgotamento durante a pandemia de Covid-19’. Com isso estamos defendendo a condução de processos de alocação de recursos que sejam transparentes e não discriminatórios, que protejam os profissionais da saúde do peso moral e jurídico de decisões tão penosas e que acima de tudo nos permitam continuar cumprindo nossa principal missão: a de salvar o maior número possível de vidas.
Tabela 1 – Princípios ético-legais que amparam o protocolo de alocação de recursos em esgotamento AMIB/ABRAMEDE/SBGG/ANCP
Princípios normativos brasileiros que informam o protocolo:
– Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e a dignidade humana.
– Código de Ética Médica e a vedação à eutanásia. Resolução Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018.
– Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.805, de 28 de novembro de 2006, sobre a autorização da ortotanásia e a obrigatoriedade dos cuidados paliativos.
– Código de Ética Médica e a vedação à distanásia. Resolução Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018.
– Ação civil pública nº 2007.34.00.014809-3, de 1 de dezembro de 2010, da Justiça Federal (Seção Judiciária do Distrito Federal) que é um pronunciamento jurisdicional transitado em julgado que assegura aos médicos e pacientes a prática da ortotanásia, proclamando a sua constitucionalidade.
– Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 2.156, de 28 de outubro de 2016 que estabelece os critérios para indicação de admissão ou alta para pacientes em UTI, com o objetivo de orientar o fluxo de acolhimento de pacientes em situação de instabilidade clínica, diante da crônica oferta insuficiente de leitos de UTI.
Princípios bioéticos específicos a protocolos de triagem em condições de desastres em massa e pandemias:
– Em situações de desastres em massa e pandemias pode ser inevitável a necessidade de processos de triagem, quando a oferta de serviços emergenciais é inferior à demanda de pacientes graves.
– A alocação de recursos baseados unicamente em ordens de chegada ou atendimento são
inadequadas.
– O princípio mais sólido, ainda na ausência de consenso absoluto, é o de priorização de pacientes com melhores chances de benefício e com maiores expectativas de sobrevida.
– A identificação de maior chance de benefício ou sobrevida deve utilizar medidas objetivas, com boa base de evidência e que possam ser aplicadas universalmente.
– O uso de um único critério não é recomendado sob risco de maior erro preditivo e de inserção de viés discriminatório no processo. A idade, por exemplo, não deve ser utilizada como critério único de triagem.
– Avaliações baseadas na subjetividade do julgamento clínico individual também devem ser evitadas, porque são mais sujeitas a vieses, potenciais discriminatórios e ao uso inconsistente.
– Transparência e clareza: critérios devem ser claros, transparentes e expostos ao escrutínio (técnico e público) e a revisões sempre que apropriado.
– A triagem deve ser aplicada a todos os pacientes, independente da doença apresentada (pandêmica ou não pandêmica).
– Pacientes que não foram priorizados na alocação de recursos escassos devem continuar a receber os demais tratamentos não racionados, quando clinicamente apropriado e consentido por eles, incluindo a imperativa oferta de cuidados de conforto caso a morte seja inevitável.
– Comunicação a pacientes e familiares da existência do protocolo e da prioridade alocada e, sempre que possível, incluir seus valores e desejos.
– Respeitar diretivas antecipadas de vontade relacionadas a recusa de tratamentos de suporte de vida no final de vida para aqueles pacientes que as redigiram antes do acometimento pela doença aguda ou exacerbação da doença crônica que motivou a internação.
– Sempre que possível e apropriado discutir com os pacientes e familiares o plano de cuidado a ser adotado em caso de deterioração clínica, incluindo a não oferta de oferta de medidas de suporte orgânico tais como a intubação oro-traqueal ou medidas de reanimação cardiopulmonar.
– O prontuário deve conter registros claros de todas as decisões tomadas entre equipe e o paciente.
– Formar sempre que possível uma equipe de triagem treinada em cada unidade de atendimento, ou uma equipe regional com representantes nas unidades de atendimento.
– Reavaliação da evolução clínica dos pacientes, de maneira a evitar o prolongamento do morrer (distanásia) naqueles pacientes que não conseguiram obter a recuperação, e dessa forma, manter a consistência com o princípio de maximização de benefícios.
Tabela 2 – Passo a passo do modelo de triagem AMIB/ABRAMEDE/SBGG/ANCP (AMB)
Tabela 3 – Sumário de recomendações AMIB/ABRAMEDE para protocolo de alocação de recursos em esgotamento diante da pandemia de Covid-19
Quanto às condições essenciais para o início da implementação do protocolo:
- Reconhecimento de estado de emergência em saúde pública;
- Reconhecimento de que tenha havido esforços razoáveis em aumentar a oferta dos recursos em esgotamento;
- Criação de comissões de triagem hospitalares pelos diretores técnicos;
- Alinhamento da gestão do protocolo intra-hospitalar com o sistema de regulação de leitos locais/regionais que facilite a disponibilidade de leitos entre unidades hospitalares;
- Responsabilidade de gestores em saúde de identificar a necessidade de início e fim da vigência da triagem a partir do monitoramento contínuo (a) das condições de esgotamento de recursos e (b) dos devidos esforços na adoção e medidas de contingência;
- Anúncio público do início e encerramento da aplicação do protocolo.
Quanto à aplicação do modelo de triagem de pacientes que necessitem recursos vitais em escassez (exemplo: suporte ventilatório ou vaga de UTI):
- Identificar a presença por parte do paciente de Diretivas Antecipadas de Vontade ou expressões de desejos prévios de não receber o recurso em escassez (exemplo: internação em UTI ou ventilação mecânica invasiva). Estes pacientes deverão ter seus desejos respeitados e não deverão ser triados;
- Manter a estabilização clínica enquanto os dados de triagem necessários sejam colhidos – idealmente os dados devem estar disponíveis em um período de 90 minutos;
- Calcular a pontuação do paciente conforme o SOFA, presença de comorbidades avançadas e ECOG (ver passo a passo na tabela 2);
- Alocar os recursos escassos aos pacientes com menores pontuações;
- Em caso de empates utilizar a presença de menor número de disfunções de órgãos e avaliação baseada em julgamento clínico e contextual da equipe de triagem;
- Comunicar de maneira empática a pacientes e familiares sobre o processo de triagem, informá-los da pontuação atual do paciente e acolher as necessidades de informação e as necessidades emocionais e espirituais sempre que possível;
- Fazer registro apropriado da pontuação do paciente em prontuário;
- Manter pacientes que não foram priorizados na lista de triagem e no aguardo da disponibilidade dos recursos;
- Revisar regularmente os critérios de triagem de cada paciente, incluindo a atualização das pontuações uma vez que elas podem variar com a evolução do quadro;
- Reavaliação regular dos pacientes que foram alocados recursos vitais em escassez; evitar a distanásia;
- Pacientes poderão solicitar exclusão da triagem a qualquer momento.
Quanto aos cuidados aos pacientes que não desejaram ou a quem não foram alocados os recursos escassos vitais:
- Pacientes que não receberão recursos em escassez devem ser internados em enfermaria e receber todos os demais cuidados e medidas de estabilização clínica com os quais consentirem;
- Pacientes que se aproximam da morte devem receber todos os cuidados que garantam a dignidade e a prevenção e tratamento dos sofrimentos físicos, sócio emocionais e espirituais;
- Um protocolo institucional de controle de sintomas que incluam medidas de boa prática no controle da dispneia e sedação paliativa quando esta for necessária deve estar disponível;
- Garantir acesso à comunicação (ainda que virtual) entre familiares e pacientes, incluindo quando possível e sob supervisão de equipe de psicologia oportunidades para rituais de despedida.
Quanto as comissões de triagem:
- Devem ser constituídas por pelo menos três profissionais experientes (dois médicos e um profissional da equipe multidisciplinar) e preferencialmente formada também por um bioeticista e/ou um representante da comunidade, ainda que sob forma remota;
- Membros das comissões de triagem idealmente devem receber treinamento para o bom exercício de suas funções;
- Serão responsáveis pela gestão da aplicação consistente do protocolo, serão acionadas em caso de dúvidas, responderão a questionamentos quanto a boa condução do processo, farão a gestão de conflitos e poderão em colaboração com a equipe assistente desempenhar o papel de comunicação com pacientes e familiares.
Outras medidas de boa prática:
- Cada instituição será responsável por viabilizar acesso a serviços de apoio psicológico a profissionais expostos a alta carga de trabalho e ao exercício de decisões complexas;
- Cada instituição deve garantir acesso a revisão externa e independente do processo de triagem;
- Manter um bom registro dos dados clínicos, pontuações e desfechos de maneira a permitir a auditoria independente do modelo e da aplicação do protocolo;
- Revisão da aceitação social, performance preditiva e aplicabilidade do modelo e instituir ajustes diante de evidências de distorções ou de possibilidades de aprimoramento do modelo e de seus processos.
Recomendamos fortemente que gestores, membros das comissões de triagem e qualquer profissional diretamente envolvidos na aplicação do protocolo o leia em sua versão integral: www.amb.org.br