A necessidade de uma solução para o dilema mundial da Covid-19 tornou ainda mais relevante uma prática do setor médico. Trata-se da adoção do medicamento off label que, traduzido ao pé da letra, significa “fora do rótulo”. Esse mecanismo, que consiste em usar um remédio desenvolvido para uma doença no tratamento de outras enfermidades, e que acabou sendo impulsionado pela pandemia, pode ter impactos positivos no mercado farmacêutico, contribuindo para a aceleração de processos burocráticos de liberação de registros.
O medicamento off label ganhou os noticiários quando surgiu a expectativa de que a cloroquina ou hidroxicloroquina, (usada originalmente para o tratamento de lúpus, malária e artrite reumatoide), pudesse ter alguma eficácia no tratamento do coronavírus, especialmente em fase inicial, entre 5 a 7 dias de infecção, quando o sintomas na pessoa infectada, em geral, são mais leves. Posteriormente, autoridades médicas, pesquisadores e a Organização Mundial da Saúde (OMS) desencorajaram o uso por não haver estudos conclusivos sobre o tema.
“Ninguém deve usar medicamento sem prescrição médica porque o uso de qualquer remédio sempre traz risco para o organismo, mas, muitas vezes, quando o medicamento já está sendo comercializado, ele pode se revelar, em testes, pela prática e pelo uso, eficaz para tratamento de outras doenças. O uso do medicamento off label é uma prática mundial e, sempre que surgem novas drogas, o lançamento delas está ligado a estudos pré-clínicos e testes extremamente rígidos e complexos de eficácia e segurança”, explica Mérces da Silva Nunes, doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sócia titular do Silva Nunes Advogados Associados e autora de obras e artigos sobre Direito Médico.
Ela cita como exemplo Ácido Acetilsalicílico (Aspirina), desenvolvido como analgésico, mas usado também para prevenção de trombose e de infartos, e o Dimenidrinato (Dramin), criado para náuseas e enjoos, mas que se revelou um bom indutor do sono por meio da prática médica e da medicina baseada em evidência:
“É importante lembrar que o uso de um fármaco sempre vai estar atrelado à indicação para determinados tipos de doenças e a complexidade do medicamento, principalmente nas questões de reações adversas e segurança dos pacientes.”
De acordo com Mérces, se os riscos não forem imediatos, como uma alergia ou um choque fatal, podem ser de médio e longo prazos, como lesões irreversíveis em algum órgão, mau funcionamento ou até a parada de alguma sistema do organismo. Mas, de acordo com a especialista, o uso off label é seguro para o consumidor, uma vez que para ser comercializado, qualquer medicamento passa por rigorosos testes de eficácia até receber a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Para a própria indústria, segundo ela, ele reflete na redução de gastos e do tempo para registro, contribuindo para o aumento de vendas do fármaco e acesso dos consumidores. “A comprovação da eficácia do medicamento para outras doenças além das originalmente indicadas na bula pode resultar em um novo registro perante a autoridade sanitária sem que os fabricantes tenham que destinar grandes somas em novas e custosas pesquisas, e, em vez disso, os recursos podem ser destinados ao desenvolvimento de novos produtos”, destaca Mérces.
De acordo com a advogada, um dos impactos que o uso off label de medicamentos pode trazer pós-pandemia é a redução do tempo de aprovação de novos medicamentos. “A criação de novas drogas sempre está ligada à comprovação da eficácia e segurança, uma etapa bastante demorada. Pós-pandemia, esse tempo pode vir a ser reduzido por meio do mecanismo de fast track, em que algumas etapas do processo são eliminadas para agilizar a aprovação. Tudo isso pode sofrer alteração, sobretudo pelo uso da inteligência artificial, que auxilia muito nas análises de resultados, eliminado etapas”, explica.