Promovido pela Revista Justiça & Cidadania, com apoio da Confederação Nacional das Seguradoras – CNseg, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o “Seminário Análise Econômica dos Atos Regulatórios na Saúde Suplementar” , realizado em 12 de agosto, possibilitou a reflexão e o debate sobre a Resolução Normativa nº 470, editada em julho pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Na abertura do evento, o ministro Humberto Martins, presidente do STJ, afirmou que o tema da saúde suplementar ainda é “incipiente e controverso no Brasil”, desde a aprovação da Lei 9.656/1998. O ministro avaliou que a existência de planos anteriores e posteriores à criação da Lei são as maiores fontes de conflitos de um processo regulatório “implicando na coexistência de dois mundos com regras contratuais e possibilidades regulatórias distintas”, gerando beneficiários com direitos diferenciados. O magistrado chamou ainda a atenção para o papel do STJ na uniformização das decisões “oferecendo segurança jurídica sobre saúde complementar”.
Já o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do STJ, lembrou que o histórico da saúde suplementar no Brasil vai completar 100 anos em 2023, o que coincide com a edição Eloy Chaves. “Desde então, a saúde suplementar no Brasil teve um crescimento exponencial e chegou a 50 milhões de usuários em 2014 e, em função das crises econômicas, temos, atualmente, em torno de 47 milhões, o equivalente a 22,5% da população”. Para o magistrado, a pluralidade de fontes normativas e as características dos contratos de saúde suplementar – mutualismo, liberdade de vinculação e longa duração contratual – impactam diretamente na jurisprudência.
“A saúde suplementar tem a sua raiz na Constituição Federal, no artigo 197. Mas, ao mesmo tempo, a Constituição coloca como um dos seus princípios os pilares fundamentais do nosso Estado democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, que tem íntima relação com as questões de saúde. Temos ainda uma lei específica para os planos de saúde, a 9.656 de 1998, e temos ainda a lei que criou a ANS, a 9.961/2000”. O ministro lembrou ainda do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, do Código Civil, de 2002 e do Estatuto do Idoso, de 2003. O magistrado dividiu ainda as questões que chegam ao Judiciário em três grandes grupos: vínculo contratual, extensão da cobertura e questões procedimentais. Sobre isso, o ministro revelou que há uma divergência de entendimento no STJ. Enquanto a Terceira Turma mantém um entendimento mais tradicional, no que seria um “rol exemplificativo”, levando em conta a complexidade de fontes normativas, a Quarta Turma opta por aplicar o modo mais restritivo, o “rol taxativo”. E explicou que esse entendimento deve ser uniformizado.
O ministro Marco Aurélio Bellizze, do STJ, abriu o Painel I sobre “A resolução 470 da ANS”, destacando que o debate tinha como foco principal o rol da ANS. “O rol taxativo é um dos principais fundamentos do equilíbrio econômico”, avaliou. “A 2ª Seção do STJ está em vias de decidir se o rol é taxativo ou exemplificativo. A jurisprudência era pacífica pela natureza meramente exemplificativa, mas em 2019, a 4ª Turma do STJ reconheceu a natureza taxativa do rol de procedimentos”, explicou. O magistrado ressaltou que o tempo de atualização do rol alterado pela Resolução 470 da ANS deve ser levado em conta na análise da questão.
“A saúde é uma coisa cara a todos nós. A racionalidade acaba quando verificamos que uma pessoa está precisando de ajuda e uma questão jurídica, contratual, impede. É diferente da locação, da prestação de um carro, que estamos acostumados a julgar”, afirmou. O magistrado ponderou que “por outro lado, temos o empresário com suas aspirações legítimas e importantes para toda a sociedade, que o serviço seja bem prestado. É um tema difícil e sensível”.
Dando continuidade ao Painel, o Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Paulo Rebello, afirmou que das 150 mil reclamações recebidas pela agência, 90% são resolvidas por meio do instrumento Notificação de Investigação Preliminar (NIP). Rebello destacou ainda que a norma nº 470, que vai entrar em vigor no dia 01/10/2021, vai romper o conceito do ciclo de atualização do rol, que passará a acontecer a cada seis meses.
“O rol é um instrumento importante para o consumidor, para o setor da saúde suplementar e garante mais segurança jurídica para os instrumentos contratuais. Em síntese, o rol determina o procedimento em saúde que o beneficiário tem ou não direito através do seu plano de saúde.” O diretor destacou ainda que é fundamental “buscar o equilíbrio e a sustentabilidade” para que o sistema continue entregando assistência, pois um desequilíbrio no cerne do mutualismo “pode causar riscos à assistência do beneficiário”, afirma.
Fechando o painel, o médico oncologista Stephen Stefani, especializado em Economia da Saúde, avaliou a utilização de novas tecnologias. Ele explicou que no passado, os médicos tomavam decisões baseadas na intuição, além de sinais e sintomas do paciente. Atualmente, os estudos clínicos e as evidências são os fatores levados em consideração. E no futuro, as decisões médicas terão o respaldo de algoritmos garantindo a precisão. O médico chamou a atenção para os preços dos novos medicamentos oncológicos que entram no mercado, cada medicamento custa em torno de R$ 50 mil por mês, por isso, cabe ao médico avaliar o real benefício na qualidade de vida do paciente decorrente desse custo. O oncologista citou um estudo chamado ‘Choosing Wisely’, da American College of Physicians, para destacar a importância de equilibrar recursos que não são infinitos entre vários pacientes. Para isso, usou um exemplo didático.
“Se eu chegar no consultório e tiver dez pacientes e eu gastar quatro horas para atender o primeiro, estou prejudicando os outros nove. Eu tenho que ter um pouco de responsabilidade na hora de distribuir o meu tempo, que é um bem indivisível, e garantir que todos saiam de lá realmente atendidos”, explicou. “O Brasil gasta aproximadamente 10% do PIB em saúde. Não é um número ruim, o problema é que mais da metade disso se gasta com 25% da população que tem plano de saúde. Obviamente que se os custos do plano ficam muito onerosos por conta de uma série de incorporações que não estavam no cálculo atuarial, isso vai empurrar mais pessoas para o SUS”, afirma.
Questões econômicas
Na abertura do segundo painel, Análise Econômica dos Atos Regulatórios, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reconheceu que as decisões judiciais, em sua maioria, não levam em contas as consequências econômicas no setor de Saúde, mas a dimensão custo é fundamental para que o sistema seja minimamente viável.
“Isso começa a mudar com a lógica consequencialista, na qual o juiz, o administrador e o aplicador do Direito são obrigados a levar em conta as consequências que as suas decisões terão no mundo real”, avaliou. O ministro afirmou que “a chamada Lei de Liberdade Econômica também introduziu a Análise de Impacto Regulatório, ferramenta que já é vastamente usada no mundo inteiro e que é fundamental para que se possa aquilatar o custo e o benefício de uma determinada regulação”.
A economista Ana Carolina Maia, da Universidade de São Paulo (USP), deu sequência ao painel alertando que a gestão do negócio pode ser dificultada com liberação de procedimentos fora do rol.
“Com o rol exemplificativo, operadoras passam a desconhecer despesas futuras, e não podem assumir contratos, uma vez que não podem garantir fluxos de pagamento para prestadores e formação de rede suficiente”, explica.
Fechando o painel, a atuária e diretora de Saúde do IBA, Raquel Marimon, lembrou que todo e qualquer novo custo, seja com remuneração dos prestadores, seja com oferta de novas tecnologias médicas, é incorporado ao preço do produto, tornando-o cada vez mais caro para empresas ou pessoas físicas a compra de cobertura de Saúde. “Hoje, os custos com planos de saúde representam 10% ou 12% das despesas das empresas, um gasto que, no fim das contas, deixa de ir para o bolso do trabalhador ou deixa de fora do sistema um número crescente de pessoas que compram proteção individualmente”, avaliou.
Ao encerrar o encontro, o ministro Luiz Felipe Salomão, do STJ, destacou que o webinar explicitou alguns dos desafios sérios que envolvem a Saúde Suplementar e sua sustentabilidade. “O índice de judicialização tem crescido e embora seja um setor regulado, o que faria com que as regras das agências impedissem a judicialização, o que assistimos é exatamente o contrário”, afirmou. O evento teve a apresentação do editor-executivo da Revista Justiça& Cidadania, Tiago Salles.