94% das escolas médicas brasileiras não observam critérios para oferecer formação de qualidade

Oitenta alunos para acompanhar uma equipe de saúde família (ESF) enquanto o recomendado é no máximo três. Um paciente internado em hospital sendo acompanhado por mais de três estudantes de medicina em lugar do parâmetro correto que seria cinco pacientes para cada aluno. Escolas sem o suporte de hospitais de ensino. Essas são situações comuns em várias faculdades de medicina do país, principalmente naquelas que começaram a funcionar a partir de 2011.

Os dados constam da Radiografia das Escolas Médicas Brasileiras 2020, divulgada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo com o estudo, 94% das instituições de ensino superior que oferecem vagas para medicina estão em municípios com déficit em pelo menos um dos três parâmetros considerados ideais para o funcionamento dos cursos.

Critérios – Na avaliação do CFM, os critérios mínimos para que o processo de ensino-aprendizagem transcorra sem problemas são: 1) oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede de curso; 2) acompanhamento de cada equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) por no máximo três alunos de graduação; e 3) presença de hospital com mais de cem leitos exclusivos para o curso.

Todos esses itens constavam das Portarias do Ministério da Educação 2/2013 e 13/2013, que condicionavam a abertura de escolas médicas em municípios que respondessem adequadamente às exigências. Contudo, esses critérios – também defendidos pelas entidades médicas – foram flexibilizados por meio da Portaria 5/2015. O texto em vigor manteve os parâmetros, mas eliminou o detalhamento de números, tornando-os subjetivos.

O CFM denuncia que a falta de locais de prática é resultado da abertura desenfreada de escolas médicas nos últimos dez anos e que o resultado será sentido pela população brasileira. “O médico mal formado tem praticamente licença para matar”, argumenta o presidente da entidade, Mauro Ribeiro.

Coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM e o professor da Escola Bahiana de Medicina, o conselheiro federal Júlio Braga conta que a falta de campos de estágio faz com que o aluno comece a trabalhar sem ter treinado as habilidades necessárias a um bom médico. “Quando era estudante, há mais de 30 anos, acompanhava de 3 a 4 pacientes por plantão. Hoje, há situações em que um paciente é acompanhado por 15 estudantes. Estressa pacientes e alunos”, conta.

“Durante sua formação, o estudante deve ter contato com o maior número de pacientes possível. Só assim, ele aprende a colher histórias, a fazer uma boa anamnese e diagnósticos certeiros. Com a falta de campos de estágio, ele chega ao mercado sem ter desenvolvido essas habilidades”, complementa o diretor de Comunicação do CFM, Hideraldo Cabeça, também professor e coordenador da Comissão de Residência Médica do Pará.

Quase 40% das escolas abertas a partir de 2011 estão em locais sem estrutura

Das 163 escolas médicas abertas entre 2011 até o primeiro semestre de 2020, 65 (39,9%) estão em 50 municípios que não cumprem nenhum dos requisitos mínimos considerados ideais para uma boa formação médica. Outras 67 (41,8%) estão em 60 localidades que apresentam dois parâmetros insatisfatórios e 22 (13,5%) estão localizadas em 20 municípios que apresentam pelo menos uma inconsistência. Apenas nove instituições (5,5%) estão em quatro cidades que atendem todas as condições para seu funcionamento.

Quando é analisada a situação das 353 escolas existentes, independentemente do ano de criação, o resultado continua preocupante. Do total, 94 instituições de ensino (26,6%) funcionam em 68 municípios que não atendem nenhum parâmetro; 134 (38%) estão situadas em 98 localidades que cumprem apenas um parâmetro; e 68 (19,3%) ficam em 43 cidades que respeitam dois parâmetros. Apenas 57 (16,1%) estão sediadas em 19 cidades que observam todos os pré-requisitos.

O trabalho elaborado pelo CFM, que fez a análise da infraestrutura para escolas a partir de dados oficiais disponíveis no Cadastro Nacional das Entidades de Saúde (CNES), constatou ainda que 77% das cidades que possuem escolas médicas não possuem leitos suficientes para o ensino médico. Uma estimativa feita pelos técnicos do Conselho indica que seriam necessários 30,2 mil novos leitos SUS para cobrir a demanda gerada pelos cursos de medicina.

Geografia – A análise desse cenário do ponto de vista geográfico indica que os maiores problemas se concentram nos estados do Norte e Nordeste. Das 32 escolas médicas do Norte, apenas uma (3,1%) está localizada em um município que atende todas as exigências preconizadas. No Nordeste, 13 escolas (15%) estão localizadas nos quatro municípios que atendem todos os parâmetros.

No Sul, todos os indicadores são observados por nove escolas (15,5%) situadas em cinco dos municípios com cursos em funcionamento. No Sudeste, isso acontece com 23 (16,3%) das 144 unidades localizadas em 5 das 94 cidades onde há escolas médicas. A melhor situação está no Centro-Oeste, onde o desempenho considerado ideal ocorre em 21 localidades com instituições de ensino que oferecem cursos de medicina, o que representa 31,3% das escolas em funcionamento.

Apesar de ser a região com o segundo melhor indicador, o Sudeste abriga o município com o pior indicador individual em relação às equipes de ESF. Jaguariúna, onde foi aberta a mais recente faculdade de medicina no país, tem 80 alunos por equipe de saúde da família. Matipó-MG (13,33) e Alfenas-MG (11,58) são os dois outros municípios do Sudeste com piores indicadores da região quanto a este quesito. Em relação ao número de leitos por aluno, Fernandópolis-SP (0,41), Vespasiano-MG (0,45) e Santa Fé do Sul-SP (0,95) são os munícipios da região com piores resultados.

Norte – Na região Norte, onde os indicadores estão muito longe do ideal, a pior situação quanto à quantidade de leitos é em Gurupi (TO), que oferece 0,86 equipamentos por aluno. Logo depois, vêm dois municípios paraenses: Redenção (1,56) e Marabá (2). Nenhumas dessas cidades conta com hospital de ensino. O Pará concentra três dos quatro municípios com pior distribuição de alunos por equipes de saúde da família. No estado, a situação é mais crítica em Redenção (10 alunos por equipe), Belém (5,61) e Marabá (5,26), que tem o mesmo indicador que Porto Velho, capital de Rondônia.

Na região nordestina, a falta de leitos para a formação dos alunos é mais sentida nas faculdades de medicina instaladas em Petrolina (PE), Jacobina (BA) e Guanambi (BA). Essas três localidades apresentam, respectivamente, um índice de 1,25; 1,26; e 1,45 leito por aluno, ou seja, cerca de três vezes menos do que o recomendado. Já com respeito à distribuição de estudantes por equipes de ESF os quadros são mais preocupantes em Imperatriz (MA), com 5,78 alunos por equipe; Barreiras (BA), com 5,71; e Maceió (AL), com índice de 5,19.

Sul – Na região Sul, onde 15,5% municípios atendem aos parâmetros defendidos pelo CFM, está a localidade com o pior resultado individual quanto ao número de leitos por estudante de medicina. Caçador, em Santa Catarina, relata apenas 0,38 leitos por aluno. Na sequência, os resultados mais negativos ocorrem no Paraná: em Campo Mourão, com 0,62 leito por aluno; e Maringá, com 1,73.

Por sua vez, a formação dos alunos na atenção básica, na região, fica mais comprometida em Passo Fundo (RS), cujo indicadores sugerem a existência de 13,60 alunos por equipe de saúde da família, quase três vezes a mais do que o sugerido; Caçador (SC), com indicador igual a 13,47; e Campo Mourão (PR), com 11,81.

No Centro-Oeste, os três primeiros piores resultados com respeito à quantidade de leitos disponíveis para garantir a boa formação estão em Goiatuba (0,50 leito por estudante), Mineiros (0,61) e Formosa (0,98). As três localidades ficam em Goiás. Em relação à distribuição de alunos por equipes de ESF, as situações mais críticas continuam no território goiano: Mineiros (13,9 estudantes em por equipe); Goiatuba (12,8); e Rio Verde (8). Nenhum desses municípios tem hospital de ensino.

Faltam leitos para que o estudante pratique a medicina

De acordo com o preconizado pelas Portarias do Ministério da Educação 2/2013 e 13/2013 e defendido por entidades médicas e professores de medicina, o parâmetro ideal é de menos de cinco leitos por cada estudante de medicina. Este seria o mundo ideal, entretanto 77% dos municípios que sediam escolas médicas não possuem número de leitos suficientes. E em 19 estados, a quantidade de leitos é inferior ao preconizado pelas entidades médicas.

Hoje, existem 155.853 leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) disponíveis nos 228 municípios que sediam escolas médicas. Para que o ideal seja atingido, seria necessária a criação de, ao menos, 30.200 leitos nos 19 estados que estão fora dos parâmetros ideais.

Apenas 23%, ou 81 escolas médicas, conseguem ter mais leitos/SUS do que o recomendado. Em 21 escolas, há menos de um leito por aluno.

Os estados com melhores densidades de leitos por aluno são Amapá (9,5), Roraima (7,7), Distrito Federal (7,0) Maranhão (6,3) e Ceará (5,9). Já os piores são Tocantins (1,9), Minas Gerais (2,9), Espírito Santo (3), Paraíba, Paraná e Santa Catarina (3,3). Em relação às regiões, o Nordeste apresenta proporção um pouco maior do que o demais (4,9)

Densidade de leitos por Região

 

Equipes de saúde da família também são insuficientes

Além dos leitos hospitalares, as equipes de saúde da família (ESF) são outro importante ambiente de prática para os estudantes de medicina. Mas, também são insuficientes para servir a grande quantidade de estudantes de medicina que entram anualmente nas faculdades. O ideal seriam três alunos por equipe, mas em 54% faltam equipes e sobram estudantes.

Os problemas são maiores nos municípios com menos de 50 mil habitantes, onde a densidade é de 8,2 alunos por cada ESF. É como se fossem oito estudantes acompanhando uma equipe formada geralmente por um enfermeiro e um médico, atendendo em um ou dois consultórios e indo na casa dos pacientes. A melhor proporção está nos municípios com mais de 500 mil habitantes, onde a densidade é de 2,0.

Densidade de alunos por ESF

Na comparação entre os estados, sete têm uma densidade maior do que a ideal: Pará (4,8), Tocantins (4,2), Rondônia (4), Espírito Santo (3,7), Alagoas (3,4), Paraná (3,1) e Goiás (3).

Júlio Braga pontua que onde faltam UBS, equipes de saúde da família e leitos também faltam médicos e, principalmente, preceptores para acompanhar os estudantes. “Se o município não tem UBS em número suficiente, como vai ter um médico treinado e qualificado para acompanhar o estudante?”, questiona.

Como funcionam os campos de estágio

Numa situação ideal, as faculdades de medicina teriam seus hospitais e ambulatórios para que os estudantes do internato, no 5º e 6º anos, praticassem o estágio. Além dos professores, esses locais teriam preceptores e orientadores, que acompanhariam esse estudante nas consultas. Os locais também teriam salas de reuniões para que estudantes, professores e orientadores discutissem os casos clínicos. “Era assim quando eu me formei na Universidade Federal da Bahia (UFBA), há 30 anos. Não tínhamos hospital de urgência, mas eram feitos convênios com hospitais que tinham orientadores”, conta Júlio Braga.

Com o aumento das escolas médicas, os hospitais que atendiam apenas uma faculdade, passaram a atender duas, três ou mais. Com isso, os campos de estágios tornaram-se insuficiente. Em relação às UBS e UPAs, as prefeituras fazem convênios com as faculdades e recebem um adicional para recepcionar os acadêmicos de medicina. Em tese, os estudantes seriam acompanhados por médicos orientadores. Em tese, porque há uma grande rotatividade de profissionais nesses locais, os médicos são sobrecarregados e não são treinados para orientar os estudantes, não há espaço para o debate dos casos clínicos e, geralmente, o estudante se vê sozinho diante do paciente, sem ter a quem pedir apoio.

Júlio Braga diz que a filha, aluna do 4ª aluno do curso de medicina da UFBA, mesma faculdade onde o pai se formou, conta que os estudantes ficam torcendo para não fazer estágio em uma UPA sem a mínima estrutura para atender os estudantes, onde faltam médicos para atender os pacientes e, consequentemente, orientar os estudantes. Já o pai de outra estudante de medicina conta que a filha acorda de madrugada para fazer a ronda em um hospital e visitar os pacientes antes dos estudantes de uma faculdade particular que também têm convênio com a instituição e que também acompanham os mesmos pacientes.

Hospitais de ensino são insuficientes

Até a década de 1970, quando foram criadas várias faculdades de medicina em universidades públicas brasileiras, a abertura de uma escola médica implicava, também, na inauguração de um hospital de ensino. Também haviam as santas casas, que a partir de um hospital, criavam um curso de medicina. Esse foi um parâmetro que ficou no passado. Hoje, as faculdades são abertas e disputam as instalações dos hospitais já existentes.

O levantamento do CFM encontrou 200 hospitais de ensino. O número é insuficiente, já que há municípios com mais de um hospital, que estão concentrados (72%) nas cidades com mais de 500 mil habitantes. Já 55,7% (191 cursos) das escolas médicas estão localizadas em municípios sem nenhum hospital apropriado para a docência.

Além de insuficientes, a divisão desses hospitais é irregular. Apesar de responder por 23,4% das vagas nos cursos de medicina, o Nordeste possui apenas 12,4% desses hospitais. Numa posição inversa, o Sul oferece 14,9% das vagas, mas possui 21,6% dessas unidades de apoio.

Veja como está a distribuição dos hospitais de ensino:

Faculdades estão concentradas no Sudeste e em municípios médios

As faculdades de medicina estão espalhadas em 228 municípios brasileiros, sendo 72,2% (255) em cidades do interior e 27,7% (98) nas capitais. 47% (168) das faculdades estão localizadas em municípios com população entre 100 a 500 mil, 35% (122) em lugares com população acima de 500 mil e 18% (63) em localidades com menos de 100 mil habitantes.

Em relação às vagas, 62,5% (23.390) estão no interior e 37,5 (13.437) nas capitais. Apesar de responderem por 47,5% das escolas, os municípios com população entre 100 a 500 mil habitantes, atendem 39,9% das vagas. Já as cidades com mais de 500 mil habitantes respondem por 46,6% das vagas. Os municípios com menos de 100 mil moradores ficam com 13,3% das vagas.

Sudeste – Das 353 faculdades de medicina com turmas em atividade, 144 estão no Sudeste, que responde por 45,4% das vagas. O estado com maior concentração de escolas é São Paulo, que conta com 69 escolas, seguido por Minas Gerais, com 47. Bahia e Rio de Janeiro vêm a seguir, com 26 e 22 escolas, respectivamente.

Densidade de egressos é maior do que a dos Estados Unidos

Hoje, o Brasil tem 9,21 recém-formado em medicina para cada grupo de 100 mil habitantes. Se ficássemos neste número, estaríamos próximos, porém em quantidade superior à do Chile (8,82), Estados Unidos (7,76), Canadá (7,7), Coreia (7.58), Japão (6,94) e Israel (6,9).

O prognóstico, no entanto, é que daqui a seis anos, quando todas as vagas criadas recentemente entregarem seus primeiros formandos, teremos 16,2 egressos por 100 mil habitantes. Essa média será maior do que a existente hoje na Holanda (15,95), Espanha (14,48), México (13,54), Reino Unido (12,87), Alemanha (12,01) e França (9,46).

Como a distribuição das escolas se dá de forma desigual, em 14 estados já há uma densidade de vagas superior a 16,9. Desses, onze estados já possuem índices iguais ou superiores aos dos sete países melhor classificados no ranking da OCDE.

Hoje, 25 estados já estão acima da média, de 9,21 vagas por 100 mil habitantes e apenas o Maranhão e o Amapá estão abaixo da média nacional, com 8,7 e 7,1, respectivamente.

A maior densidade está na região Sudeste, com 18,3 vagas, seguida do Centro-Oeste (17,6), Sul (17,2), Nordeste (15) e Norte (14,8).

Estados com densidade superior a 16,9:

Presidente do CFM defende manutenção da moratória

O presidente do CFM defende que a moratória assinada em 2018 pelo presidente Michel Temer, que suspendeu a abertura de novas escolas até 2023, seja mantida por mais tempo. “Após a moratória, foram suspensos os editais para a abertura de novas faculdades, mas àquelas que foram licitadas durante o mandato da ex-presidente Dilma foram autorizadas a funcionar”, explica.

As entidades médicas conversaram com o então presidente Michel Temer para que fossem suspensas as vagas remanescentes, mas ele afirmou que não teria condições políticas devido a pressões realizadas por deputados e senadores. São essas mesmas pressões que fizeram com que municípios inicialmente reprovados pelas Comissões Avaliadoras do Ministério da Educação fossem habilitados posteriormente.

“Para atrair faculdades privadas, os prefeitos prometem a abertura de leitos do Sistema Único de Saúde, a construção de hospitais de ensino e a ampliação de equipes de saúde da família. Depois que a faculdade é instalada, esquecem o prometido. Ninguém está preocupado com o ensino-aprendizagem, com a qualidade do internato que será oferecido aos acadêmicos de medicina”, lamenta.

Para Mauro Ribeiro, a sociedade brasileira é quem pagará essa conta. “Haverá um impacto violento no mercado de trabalho do médico, mas a nossa preocupação é com a saúde da população, que será atendida por um médico formado em escolas desestruturadas e sem locais de prática”, argumenta.

Redação

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