Nossos genes podem contar a nossa história, podem predizer o risco de uma pessoa ter certas doenças. Por isso, conhecer a história que nossos genes nos contam, em alguns casos, pode ajudar a diagnosticar precocemente ou até prevenir doenças como o câncer. Por exemplo, um erro, ou mutação, no gene TP53 pode causar a pessoa a desenvolver câncer mais precocemente, quadro que leva o nome de Síndrome de Li-Fraumeni (LFS).
Apesar desta ser uma síndrome rara no mundo, sabe-se hoje que os brasileiros têm uma prevalência maior dessa síndrome em comparação com o resto do mundo. Mas, essa síndrome nem sempre é reconhecida, pois o sistema público de saúde no Brasil não investiga os pacientes suspeitos de ter essa mutação. “As famílias como a Síndrome de Li-Fraumeni tem um risco muito alto para o desenvolvimento de câncer e o rastreamento vai salvar muitas vidas! É mais custo-efetivo hoje no Brasil fazer o teste genético para identificar pessoas com Síndrome de Li-Fraumeni do que tratar todos os casos de câncer que esses portadores da mutação terão ao longo da vida, mesmo para pacientes do SUS”, explica Maria Isabel Achatz, pesquisadora do Hospital Sírio-Libanês. Ela acaba de publicar um estudo que comprova essa tese na revista The Lancet Regional Health – Americas, conduzido juntamente com sua aluna de doutorado Mariana Cartaxo, com a economista Isadora Frankenhal, brasileira que está realizando seu doutorado no MIT (Massachusetts Institute of Technology – EUA), e Casey Tak, professor da Universidade de Utah (EUA) .
Os portadores da Síndrome de Li-Fraumeni no Brasil apresentam uma mutação específica (R337H) localizada no gene TP53, que é o principal gene supressor de tumores em todos humanos. A presença de uma mutação pode impactar na sua capacidade de exercer sua função de suprimir células que apresentem informações que levem à formação de tumores. Portadores dessa síndrome apresentam casos frequentes de câncer em idades muito precoce e podem ter múltiplos canceres ao longo da vida.
Os brasileiros do Sul e do Sudeste apresentam a mutação R337H, que leva à Síndrome de Li-Fraumeni, numa proporção muito maior do que os demais países. Estudos envolvendo mais de 150.000 crianças recém-nascidas verificaram que a prevalência nestas regiões é de 0,3% da população, ou seja, cerca de uma pessoa a cada 300 pessoas apresentam a mutação. Como temos no Brasil cerca de 75% da população dependente do Sistema Único de Saúde (SUS), a ideia deste estudo foi avaliar se realizar o teste genético e todos os exames de rastreamento nas pessoas que tiverem a Síndrome de Li-Fraumeni custaria menos ao governo brasileiro do que tratar todos os casos de câncer com quimioterapias, cirurgias e com todas as perdas humanas que podem acontecer. A identificação da mutação genética permite o diagnóstico precoce do câncer para o portador e, também, para sua família – que pode ser portadora da mesma mutação. Cada familiar direto tem 50% de risco de ter herdado a mesma alteração genética. “Hoje, não é possível realizar o teste genético para investigação da Síndrome de Li-Fraumeni no SUS. É importante entendermos que este é um problema de saúde pública e que precisa ser endereçado”, diz Maria Isabel Achatz.
Na prática
Uma paciente que apresenta câncer de mama aos 30 anos de idade dentro do SUS seria uma pessoa que poderia ser testada para esta mutação específica. Essa paciente identificada permitiria então investigar a sua família, que pode incluir pais, irmãos, filhos, primos. Como se trata de uma mutação hereditária, identificar uma pessoa dentro da família pode ser um alerta para todos. Ao encontrar aquela pessoa dentro do sistema de saúde, o rastreamento genético de apenas esta mutação pode ajudar dezenas de pessoas. Pois o irmão dessa paciente pode já ter seus próprios filhos, e assim subsequentemente. São pessoas que vão saber da sua predisposição para tumores e começar a fazer seus próprios check-ups mais precocemente.
Segundo o estudo publicado no The Lancet, o modelo adotado pelos pesquisadores foi o ICER -razão de custo-efetividade incremental, que expressa qual o custo adicional por ano de vida ganho, comparando as estratégias com e sem vigilância em portadores com Síndrome de Li-Fraumeni. “Nossa pesquisa foi clara ao concluir uma maior probabilidade de o uso da investigação genética nesse gene ser uma estratégia de vigilância mais custo-efetiva, além de aumentar a sobrevida e qualidade de vida dos pacientes”, diz Maria Isabel Achatz. Ela explica que hoje os preços dos testes genéticos caíram muito, possibilitando um ganho substancial nos custos acumulados dos cuidados com pacientes com essa mutação dentro do SUS. “Estamos trazendo aqui a evidência científica para que medidas públicas possam ser adotadas para melhorar o sistema de saúde para os brasileiros”, conclui a pesquisadora.