Atravessamos uma semana em que a classe médica ficou em polvorosa. O centro da polêmica foi (e continua sendo) a Resolução 2.227/2018, do Conselho Federal de Medicina, que define e disciplina a telemedicina como forma de assistência mediada por tecnologias.
Entre outras novidades, a normativa, prevista para entrar em vigor daqui três meses, estabelece que os médicos brasileiros poderão realizar consultas online, assim como telecirurgias e telediagnóstico, entre outras formas de assistência à distância. Enfim, abre uma lacuna perigosa, já que é bem genérica e ampla.
Muitos médicos protestaram veementemente. Não só os médicos, como conselhos estaduais, associações de profissionais de medicina e sindicatos. Há também os que defendem a proposta, alegando que a tecnologia é o futuro da saúde. Que só assim chegaremos a áreas remotas, reduziremos investimentos e ampliaremos o atendimento.
O debate esquentou a tal ponto que o Conselho Federal adotou o jeitinho brasileiro. Fez que não fez, disse que não disse e mudou de opinião. Soltou nota informando que a partir da publicação, haverá consulta pública por três meses para colher opiniões e propostas dos médicos. Imediatamente após as sugestões serão levadas à plenária do CFM para eventuais revisões.
Enfim, houve muito barulho, a versão válida mesmo só sairá daqui a três meses e, ao menos, por enquanto, tudo segue como dantes no quartel de quartel de Abrantes, como filosofam nossos compatriotas portugueses.
De minha parte, compreendo que a medicina não pode se transformar em terra de vale tudo para empresas do ramo tecnológico. Por mais que novas soluções facilitem a comunicação a distância, elas jamais substituirão aquilo que é praticamente a alma da prática médica: o toque, a interação humana.
Ninguém em são consciência pode argumentar que uma consulta presencial é igual àquele feita via internet. Não o é nem nunca será. A telemedicina é tapar o sol com a peneira. É, mais uma vez, enganar a população afastada que clama e merece atendimento médico digno.
Já na consulta presencial você foca os olhos do paciente e desde esse momento começa a diagnosticá-lo. O olhar, o tom de voz, a expressão corporal, tudo isso faz diferença para um diagnóstico qualificado e com base humanística. Outra característica insubstituível de uma consulta presencial é o toque. Quando um médico toca um paciente, algo de sobrenatural acontece. O médico colhe informações preciosas ao sentir a temperatura da mão, ao auscultar o coração, o pulmão.
Um bom médico não abre mão jamais desse momento mágico e sagrado da medicina. Os pacientes, certamente, não quererão abdicar dele também. Às vezes, só o toque do médico, o olhar cuidadoso e algumas palavras já ajudam muito a reverter quadros de enfermidades.
Jamais uma consulta dermatológica a distância terá a mesma eficiência de uma presencial, só para pegar um exemplo bem simples. Quando você toca em uma pinta na pele em uma erupção cutânea, você detecta a aspereza, capta se é um simples vaso estourado ou outro tipo de lesão. Sente a textura e vai colhendo dados essenciais para concluir se é uma reação alérgica a algum medicamento, a uma picada de inseto, se é rescaldo de um traumatismo e assim por diante. Alguém acha que isso é possível via a tela do computador?
Não sou contrário ao uso de recursos tecnológicos na prática médica. Eu mesmo uso algumas ferramentas para tirar dúvidas e manter o paciente acolhido. Mas o limite é mais ou menos este. O médico, ao menos o bom médico, aquele que gosta de gente, que vive para curar e salvar vidas, jamais aceitará que lhe sejam furtados os princípios elementares da relação com o paciente: o olho no olho e o toque.
Não sabemos como funciona o outro lado da vida. mas com tudo o que está acontecendo, tenho impressão de que William Osler, um dos maiores expoentes da Clínica Médica, deve estar pasmo com todo esse episódio, envolvendo os rumos da telemedicina no Brasil.
Canadense de nascimento, ele foi, no século XIX, um dos professores fundadores do Hospital John Hopkins, em Baltimore, que revolucionou o ensino médico nos Estados Unidos. É dele a famosa frase: “A medicina deve começar com o doente, continuar com o doente e terminar com o doente”.
Antonio Carlos Lopes é presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM)