Em entrevista exclusiva à Revista Hospitais Brasil, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) para a gestão 2019-2024, fala sobre as prioridades da entidade para o período, incluindo os desafios do setor da saúde no Brasil, o ato médico e a nova resolução sobre a telemedicina.
Representante dos médicos do Mato Grosso do Sul, Ribeiro é cirurgião-geral formado pela Faculdade de Medicina de Petrópolis (RJ), com residência em Cirurgia Geral no Hospital Souza Aguiar (RJ) e pós-graduação no Hospital Monte Sinai, em Nova Iorque (EUA). Ele presidiu o Conselho Regional de Medicina do Estado do Mato Grosso do Sul de 2005 a 2007; e foi 1º vice-presidente do CFM entre 2014 e 2019, onde coordenou o Departamento de Comissões e Câmaras Técnicas. Neste último período, teve atuação destacada em áreas ligadas ao direito médico, urgências e emergência e ensino médico, entre outras.
Quais as prioridades para a gestão 2019-2024?
Mauro Ribeiro: Há muito a fazer em diferentes áreas. Contudo, de forma resumida, é possível destacar alguns pontos. A articulação política ocupará espaço de destaque na agenda do Conselho. É nossa intenção reformularmos a Comissão de Assuntos Políticos do CFM, que já é extremamente atuante, com a incorporação de novos membros e a realização de programações semanais no Congresso Nacional, visitando parlamentares e acompanhando as audiências públicas que sejam de interesse da medicina brasileira. Vamos deixar de ter uma ação reativa e passar realmente a seguir aquilo que os nossos deputados nos falam, que é estar um passo à frente em relação às proposições que tramitam no Congresso Nacional. Também daremos foco na fiscalização, que é uma das competências legais dos conselhos de medicina. Vamos aprimorar esse processo e dialogar com os conselhos regionais. Precisamos juntar informações para podermos atuar em prol de melhorias nas políticas públicas dentro do Ministério da Saúde. Também atuaremos pela qualificação do ensino médico no Brasil, com a implementação do Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (Saeme), criado pelo CFM, uma iniciativa que já acreditou mais de 30 instituições de ensino, com base em critérios de excelência. Neste lado do mundo, a única instituição que tem registro na World Federation for Medical Education somos nós. E isso é extremamente importante, pois, a partir de 2023, médicos que decidirem emigrar para os EUA, obrigatoriamente terão de ser graduados no país de origem por uma escola acreditada e com registro na WFME. E só nós temos isso aqui. É um legado que nós deixamos.
Quais os principais desafios que a categoria enfrenta? Como esses desafios serão vencidos?
Mauro Ribeiro: Atravessamos um momento ímpar na história da medicina brasileira. A crise pela qual passamos é tão grave, com repercussões em tantos aspectos do exercício profissional e na formação de futuros médicos, que, neste momento, precisamos nos despir de nossas vaidades, nos sentarmos e fazermos, juntos, realmente algo que faça a diferença. Nesse sentido, a gestão que tem início no CFM buscará, sobretudo, construir pontes e canais de diálogo. É nossa intenção atuar em sintonia com a Associação Médica Brasileira (AMB), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e a Federação dos Médicos do Brasil (FMB), assim como com todas as sociedades de especialidades. Todas são grandes parceiras dos conselhos de medicina, com importantes contribuições para o movimento médico nacional. Sabemos que, algumas vezes, esse relacionamento tem sido prejudicado por razões políticas, mas isso não pode ser visto como obstáculo. É hora de focarmos naquilo que nos une, nos mantém alinhados, ou seja, por um lado, a valorização da medicina e do médico, e de outro lado, a criação de uma rede de assistência de qualidade, que traga segurança e eficiência aos milhões de atendimentos realizados todos os dias em postos de saúde, consultórios, prontos-socorros e hospitais. Além desse movimento estratégico, baseado em pautas comuns, o CFM dará continuidade ao cumprimento de sua missão legal, com o fortalecimento de seu trabalho no campo da fiscalização e na defesa da profissão, com interações efetivas em campos como ensino médico, articulação política e proteção ao ato médico, conforme previsto na Lei nº 12.842/2013. E é necessário destacar um ponto: em nenhum desses aspectos começaremos do zero. Isso porque muito foi feito nas gestões que nos antecederam. Essas realizações serão o ponto de partida para irmos além, aperfeiçoando fluxos, processos e normas, levando o CFM e a classe médica a avançar.
De que forma o CFM pode intensificar a defesa do ato médico? Quais são hoje as principais ameaças?
Mauro Ribeiro: Atualmente, o ato médico sofre ameaças por parte de profissionais de outras categorias da área da saúde, que tentam invadir de forma irregular competências exclusivas da medicina previstas em lei. Também existe um movimento em alguns grupos de gestores que trabalha para fragilizar o papel do médico nos fluxos assistenciais, buscando compartilhar responsabilidades que são do médico com outros profissionais. Esses dois focos de ameaça interagem, sobretudo, com o Poder Legislativo, levando para o debate com deputados e senadores propostas que são de seu interesse. O CFM, em parceria com as outras entidades médicas, não tem dado trégua aos que participam desse movimento. No campo jurídico, há um grande número de ações na Justiça em tramitação questionando atos administrativos ilegítimos que tentam ampliar escopos de atuação indevidamente. Inclusive, muitas dessas representações feitas pelo Conselho já contam com liminares e sentenças definitivas favoráveis.
O senhor, na ocasião da sua posse, reforçou a intenção do CFM de se empenhar na defesa do Sistema Único de Saúde. Quais são as principais ameaças ao SUS?
Mauro Ribeiro: O SUS é, do ponto de vista normativo, uma das grandes referências mundiais em termos de modelos assistenciais. Contudo, o nosso Sistema carece de melhorias em dois aspectos. O primeiro é gerencial. É necessário o aperfeiçoamento e a modernização da sua gestão para dar conta de sua imensa complexidade. Essa meta exige investimentos na qualificação das equipes, atualização de regras, transparência nos dados e maior controle operacional. O segundo aspecto é a crise de recursos que afeta a rede pública, que vem sendo historicamente subfinanciada. O governo federal, ao longo dos últimos anos, tem adotado uma política de reduzir, cada vez mais, investimentos em saúde e transferir essa responsabilidade para estados e municípios. Para expor a situação caótica, em conversa pessoal, um prefeito me afirmou que um município com menos de 200 mil habitantes não tem a menor possibilidade de obter qualquer tipo de receita de investimento. Dessa forma, esse município fica totalmente refém de projetos levados ao Ministério da Saúde ou ao governo estadual. O governo federal, que já chegou a financiar 60% dos gastos públicos em saúde, hoje participa com apenas 45%, deixando o restante por conta de estados e municípios. Fizemos um levantamento sobre as contas da Saúde, pelo CFM, junto com a ONG Contas Abertas, e descobrimos um verdadeiro escândalo. Do dinheiro orçado para a saúde, que já é subfinanciado e muito aquém do necessário, aproximadamente R$ 10 bilhões, todos os anos, não são executados. Trata-se de dinheiro aprovado no orçamento da União. Então, entre 2003 e 2018, cerca de R$ 180 bilhões não foram executados – segundo dados do SIAFI – Sistema Integrado de Administração Financeira e, portanto, do próprio governo federal.
Como o CFM se posiciona em relação à qualidade do ensino médico no Brasil, considerando o grande número de escolas médicas abertas nos últimos anos?
Mauro Ribeiro: Hoje nós já temos 341 escolas. Não existe precedente no mundo de que num espaço de menos de 10 anos tenham sido abertas mais de 140 escolas médicas. Estamos no limite para que essa aberração volte a assombrar a medicina e a população brasileira. Esse é um problema que nós e a entidade médicas temos de resolver juntos. Nesse sentido, o CFM tem buscado apoio à manutenção da moratória que suspendeu a criação de escolas médicas por cinco anos junto a diferentes setores. Temos conversado com parlamentares e ministros, apresentando argumentos fortes. Inclusive, o presidente Jair Bolsonaro está ciente de nossas preocupações, tendo sinalizado a realização de uma reunião com representantes dos Ministérios da Saúde e da Educação para discutir o assunto. Essa moratória resultou de uma longa negociação com o então presidente Michel Temer, que apoiou a medida por sugestão de Mendonça Filho, seu ministro da Educação. Atualmente, percebe-se a inquietação de alguns setores da Esplanada, que trabalham para mudar a regra e permitir o retorno de um verdadeiro balcão de negócios em relação à abertura de escolas médicas no Brasil. De modo complementar, queremos trabalhar pela qualificação do ensino nas escolas que já estão abertas.
Quais as expectativas em relação à nova resolução sobre Telemedicina?
Mauro Ribeiro: Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que foram justas as críticas pela maneira como o CFM divulgou a Resolução 2.227/2018, que trata da telemedicina e foi revogada posteriormente. Essa resolução foi votada por unanimidade no plenário e depois, quando vieram as críticas, ficou muito claro que erramos. No entanto, o trabalho levou cinco anos e está feito. Quem a elaborou foram as maiores cabeças pensantes nesse assunto no Brasil. Nesta gestão, vamos incorporar os novos conselheiros ao processo de avaliação do relatório elaborado e também na análise de mais de três mil sugestões para aperfeiçoamento da norma, encaminhadas pelos médicos e pelas entidades de representação da categoria. Além disso, discutiremos o tema de forma exaustiva com todos os CRMs, com todas as sociedades de especialidade, com o Ministério da Saúde, com o Congresso Nacional. Tenho certeza que, ao final, teremos uma norma que será resultado do diálogo e da percepção dos avanços necessários e pertinentes para a medicina brasileira. Importante frisar ainda que a atualização da resolução da telemedicina não é necessária para o CFM, é necessária para o médico brasileiro, que está sendo explorado por uma série de operadoras de saúde, que ganham fortunas com essa modalidade, hoje. E esses médicos estão sendo explorados pela ausência de um escopo normativo que impeça os abusos e as irregularidades. Por isso, precisamos dar respaldo a esses profissionais e reelaborar essa resolução.