Há pouco mais de um ano, confirmava-se o primeiro caso de infecção por Covid-19 no Brasil. Naquele momento, dava-se início ao que se tornaria a maior crise sanitária enfrentada pelo país, culminando no reconhecimento pelo Congresso Nacional da ocorrência de estado de calamidade pública, em 26 de março.
De forma repentina, muitos profissionais tiveram que mudar drasticamente sua forma de trabalho e se adaptar a novas formas de prestação de serviços, incluindo o teletrabalho. A pandemia também causou uma forte sobrecarga psicológica, física e emocional. Uma questão que se impõe cada vez mais, nesse contexto, é a avaliação e revisão de como foi feita essa migração para o trabalho remoto e quais os impactos causados para os profissionais nessa nova realidade.
A análise desses pontos sensíveis são atualmente objeto de diversas pesquisas científicas ao redor do mundo e começam, também, a ser objeto de reclamações trabalhistas ajuizadas na Justiça do Trabalho. Em grande parte, esses novos processos se destinam a avaliar o desenvolvimento, por trabalhadores, de sintomas relacionados à Síndrome de Burnout, ou síndrome do desgaste profissional, caracterizada pelo estresse crônico no local de trabalho que não foi administrado com sucesso, como classificou a OMS. Três dimensões da síndrome são usualmente consideradas: sensação de esgotamento e falta de energia, o aumento dos sentimentos de negativismo relacionados ao trabalho e eficácia profissional reduzida.
No âmbito do poder judiciário, o Burnout é caracterizado como uma doença ocupacional de diagnóstico complexo, ligada a diversos fatores laborais e ao meio ambiente de trabalho que, dentro do atual contexto pandêmico, passa a ser rodeado de intenso estresse e elevada pressão. Nesse contexto, há uma desvalorização da qualidade de vida, da saúde e do lazer.
O sistema de home office foi introduzido da noite para o dia para grande parte dos trabalhadores, sem que as empresas pudessem se preparar para operar adequadamente neste modelo. Poucas eram as organizações que tinham uma política formal de trabalho remoto implementada no Brasil quando foi declarada a pandemia.
Um estudo da Associação Paulista de Medicina do Trabalho¹ indica que a migração para o trabalho remoto foi feita de forma improvisada, sem levar em consideração adequadamente importantes aspectos físicos, cognitivos e até emocionais dessa alteração.
Entretanto, ainda não é possível afirmar que houve uma análise aprofundada sobre o tema no poder judiciário, incluindo na Justiça do Trabalho. A caracterização de doença ocupacional é sempre objeto de controvérsia fática e jurídica, que depende inevitavelmente da condução de perícia médica, manifestações das partes, prova testemunhal e prova documental, entre outros aspectos.
O curto tempo transcorrido desde o início da pandemia até o momento faz com que a discussão judicial sobre a relação do Burnout e o trabalho remoto nesse período seja, ainda, insipiente. Os casos ajuizados estão, em muitas vezes, ainda em fase inicial de instrução e ainda há muito desconhecimento e preconceitos sobre o tema.
Por outro lado, a concepção do desgaste nos profissionais de saúde já é objeto de reflexão em diversos artigos científicos ao redor do mundo, incluindo no Brasil. Um recente estudo da Fiocruz² aponta que 47,3% dos trabalhadores em serviços essenciais durante a pandemia têm apresentado sintomas de ansiedade e depressão, tendo grande parte deles se socorrido ao abuso de bebidas alcoólicas e sofrido mudanças significativas em seus hábitos do sono.
A PEBMED, uma healthtech de conteúdo para médicos, também conduziu recentemente um estudo³ que revelou a presença de sinais do Burnout em 78% dos profissionais de saúde no período da pandemia. Segundo a pesquisa, a prevalência foi de 79% entre médicos, 74% entre enfermeiros e 64% entre técnicos de enfermagem.
Embora a análise jurídica desse tema ainda tenha que ser aprofundada, durante o julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.377, na qual o STF discutia a constitucionalidade de diversos dispositivos da MP 927/2020, a ministra Rosa Weber deu atenção especial em seu voto4 aos profissionais que trabalham na linha de frente do combate à Covid-19. Segundo a ministra, estes profissionais administram não apenas o atendimento dos inúmeros casos, mas também a deficiência na estrutura do sistema de saúde. Além disso, ela menciona que o trabalho nesses ambientes acarreta altos níveis de estresse, com reflexos negativos na saúde física, psicológica e social desses trabalhadores.
Está claro que a pandemia deixará marcas profundas no mercado de trabalho brasileiro. Os estudos e pesquisas desenvolvidos recentemente mostram que o Burnout será, certamente, um legado desse período. Em breve veremos esse tema sendo discutido no Poder Judiciário com muita frequência, o que forçará a criação de parâmetros a serem observados por empregados e empregadores para mitigar as implicações dessa grave síndrome.
Na ausência de norma ocupacional específica sobre o tema, e enquanto a questão não é adequadamente tratada na jurisprudência, é muito importante que seja feita uma divulgação adequada de informações sobre o desenvolvimento e tratamento dessa doença. A sociedade precisa se conscientizar cada vez mais sobre a importância da saúde mental e que o Burnout não é mera desídia do trabalhador, mas uma doença séria. A implementação de medidas preventivas pode gerar um aumento expressivo na qualidade do trabalho desenvolvido por seus empregados e nos problemas futuros relativos às doenças ocupacionais.
Leticia Ribeiro é sócia da área trabalhista do Trench Rossi Watanabe, e advogado Matheus Giglio
Referências:
RAULINA, Fabiana. Reflexões sobre a ergonomia aplicada ao teletrabalho. Disponível em apmtsp.org.br/reflexoes-sobre-a-ergonomia-aplicada-ao-teletrabalho
² ICICT; Fiocruz. Pesquisa analisa o impacto da pandemia na saúde mental de trabalhadores essenciais. Disponível em portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-na-saude-mental-de-trabalhadores-essenciais
³ Medicina AS. 78% dos profissionais de saúde tiveram sinais de Burnout durante pandemia. Disponível em medicinasa.com.br/burnout-profissionais-de-saude
4 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta De Inconstitucionalidade 6.377. Disponível em: portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343577274&ext=.pdf