Enquanto ciência ganhou notoriedade no último ano os impactos da produção científica brasileira na vida dos brasileiros não vêm tendo o mesmo destaque. O alerta é do doutor em Ciências, em Engenharia Biomédica, o cientista e escritor Aldo Fontes-Pereira. Em entrevista inédita, o especialista em Ativação de Processos de Mudança na Formação Superior de Profissionais de Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor universitário traça um panorama dos achados nacionais. “Um número significativo de produções com retratações teve os seus resultados usados como referência para sustentar hipóteses em outros estudos. O que pode gerar um efeito ‘bola de neve’ com a propagação do erro”, avisa.
Aldo tem propriedade para falar sobre o assunto, além do currículo acadêmico é colaborador em pesquisas científicas (inter)nacionais, integrante do corpo docente do Centro Universitário Serra dos Órgãos e também editor-associado da revista ‘Fisioterapia em Movimento’, membro do corpo de revisores de periódicos e avaliador ad hoc de órgãos de fomento à pesquisa do Brasil.
Para ajudar a minimizar esses impactos, Aldo faz a sua parte dentro da literatura com o livro recém-lançado ‘Escrita científica descomplicada: como produzir artigos de forma criativa, fluida e produtiva’, e também sua primeira obra ‘Revisão Sistemática da Literatura: Como Escrever um Artigo Científico em 72 Horas’.
Porque você decidiu escrever um livro para descomplicar a escrita científica?
Aldo Fontes-Pereira – O meu maior objetivo é contribuir para o avanço da sociedade na totalidade. Temos diversos cientistas e pesquisadores que realizam pesquisas e os resultados são excelentes. No entanto, esses resultados, em forma de artigo científico, muitas vezes, quando publicados não ganham a devida visibilidade na comunidade científica e entre o público não especializado por ser escrito de maneira inadequada. Assim, não apenas o pesquisador perde, mas também a sociedade como um todo. Sabendo desse grande problema, eu coletei por anos, diversas dicas de escrita científica de vários cientistas e pesquisadores de sucesso. Eu tinha em minhas mãos um verdadeiro tesouro, então decidi, compartilhá-lo a fim de descomplicar a escrita científica.
Quanto tempo levou para escrever a obra e qual seu propósito com ela?
Aldo Fontes-Pereira – Desde 2016, iniciei o processo de coleta de dados e entrevistas. Fiz um esboço em 2017, mas o livro começou a tomar corpo no final de 2019 e me dediquei profundamente em 2020 para reunir, analisar, atualizar e colocar no formato do livro que temos hoje. O meu objetivo é contribuir para o avanço da ciência e que os estudos ganhem o devido reconhecimento.
Podemos dizer que seu livro é um manual para quem quer apresentar uma pesquisa científica?
Aldo Fontes-Pereira – Sim. Digo que ele é um orientador em formato de livro. Pois, orienta o autor desde a organização das ideias e resultados até a submissão do artigo a uma revista ou banca de avaliação.
Existe algum número de achados no país no último ano e quais são os impactos deles?
Aldo Fontes-Pereira – O Brasil ocupa a 14ª posição mundial em quantidade, com mais de 84 mil publicações (em 2019) indexadas na base Scopus. Mas, o impacto científico em 2019 diminuiu em relação aos anos anteriores, conforme aponta o SCImago Journal & Country Rank.
Você comentou que muitos papers relacionados a Covid-19 estão com erros e que muitos foram replicados. Qual o impacto disso a médio e longo prazo?
Aldo Fontes-Pereira – Atualmente, estamos estudando as retratações científicas (retirada de circulação de artigos com algum problema – pelo menos isso é o esperado) relacionadas ao Covid-19. Percebemos um número significativo de produções que apresentaram problemas e isso repercutiu na retratação delas. Algumas dessas publicações tiveram os seus resultados usados como referência para sustentar hipóteses em outros estudos. O que pode gerar um efeito ‘bola de neve’ com a propagação do erro. As causas desse problema são diversas. Podem ser por plágio ou problemas nos dados coletados e até erros metodológicos, que muitas vezes ocorrem pela pressa em publicar. Convém lembrar, que a ciência evolui pela constante busca em entender e explicar diversos fenômenos. Assim, muitas explicações científicas outrora consolidadas podem ser revistas e alteradas. Em um período de pandemia, esse cenário se torna mais crítico, pois as decisões têm que ser tomadas de forma rápida a partir da melhor evidência que há. Desse modo, as medidas tomadas podem não alcançar o esperado pela falta do entendimento e descoberta de alguns fatores. O que precisamos nos atentar é que os artigos científicos podem criar importantes indicadores de alerta para a tomada de decisões na saúde pública e, até mesmo, política. Assim, os erros nos artigos podem nos atrasar nessas decisões ou nos fazer tomar decisões erradas.
A pandemia da Covid-19 aproximou os brasileiros da ciência?
Aldo Fontes-Pereira – Eu encaro que sim. Vejo muitos brasileiros buscando dados científicos sobre vacinas, dados epidemiológicos sobre o Covid-19, citando nomes de pesquisadores e universidades, e lendo reportagens sobre testes e possíveis novas vacinas. A ciência se aproximou mais da sociedade brasileira. Os brasileiros estão vendo a necessidade de ter uma ciência forte e valorizada.
Como você considera o impacto das fake news na ciência brasileira?
Aldo Fontes-Pereira – Muito preocupante. Isso pode gerar problemas grandiosos. O termo ‘fake news‘ na ciência está na moda, é mais fácil de assimilação por todos, mas não é algo atual. Infelizmente, temos um lado obscuro ciência: a má conduta científica. Que vai desde plágio até manipulação de dados. Além disso, têm as revistas predatórias, que aceitam artigos sem a revisão adequada. Convém ressaltar, que ainda temos os casos de compra de trabalhos de conclusão de curso. Essa atividade deveria ser aproveitada pelo acadêmico para aprender a como pesquisar e obter os diversos benefícios da escrita científica. Porém, muitos escolhem cometer o erro e comprar este trabalho.
Quais são os desafios de ser cientista no Brasil?
Aldo Fontes-Pereira – São muitos e variáveis. Depende da fase em que o cientista está. Isto é, posição que o cientista ocupa, o local que ele trabalha e a credibilidade que possui. De uma forma geral, os problemas percorrem em torno de dificuldades para importar alguns produtos e equipamentos; conquistar verba para realizar projetos; alta concorrência em editais de fomento a pesquisa; ainda o pouco reconhecimento pela sociedade; poucos concursos em universidades públicas e os altos custos para publicação em grandes revistas científicas. Algumas coisas melhoraram, por exemplo, a importação via cotas do CNPq simplificou várias fases da importação, mas ainda se demora cerca de 3-5 meses desde que se compra o insumo/produto, até que ele chegue no laboratório. O concorrido edital universal do CNPq é separado por faixas e isso permite que os pesquisadores iniciantes não disputem contra os pesquisadores com mais tempo na pesquisa (que normalmente apresentam um currículo mais robusto), o que torna o processo mais justo, porém acirrado. A faixa desse financiamento vai de 20 mil a 120 mil reais (total para 3 anos), o que ainda não permite a compra de equipamentos mais sofisticados e o pagamento de contratos de manutenção deles. Há outros editais com valores mais altos, mas são bem escassos.
Além deste lançamento, você pretende publicar outros livros? Quais são os seus próximos projetos?
Aldo Fontes-Pereira – Sim. Além de terminar alguns artigos científicos. Pretendo finalizar mais dois livros de não-ficção. Um sobre ossos e outro sobre cientistas brasileiros.