O InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP) realizou cirurgia inédita no mundo para tratar a pressão alta no interior do pulmão de pacientes com insuficiência cardíaca congestiva (ICC) que necessitam de transplante de coração mas que não podem fazê-lo por causa exatamente da doença pulmonar. A nova técnica mostrou-se capaz de resgatar esses pacientes dessa condição que, em 100% dos casos, evolui para cuidados paliativos, sem qualquer alternativa terapêutica.
Primeiro paciente tratado com a técnica de dois corações do InCor, o professor universitário Lincon Paiva, de 55 anos, está desde o dia 5 de novembro se recuperando em casa, de onde ficou distante por mais de cinco meses. “Estou muito feliz de poder voltar para minha vida normal e daqui pra frente é poder recuperar e retomar minha vida”, disse.
A nova técnica do InCor consiste basicamente em utilizar um coração novo doado, para reverter a pressão alta pulmonar, enquanto o coração doente, que está mais apto a trabalhar com a sobrecarga da pressão alta do pulmão, dá suporte ao coração implantado.
Durante alguns meses, enquanto se processa a melhora da pressão pulmonar, o paciente vive com dois corações trabalhando simultânea e harmoniosamente, com batimentos cardíacos, pulsação e funções circulatórias específicas.
A técnica de utilização de dois corações conjugados já existe no mundo e é chamada de heterotópica. Usada em caráter permanente, essa técnica não tem bons resultados para a sobrevida dos pacientes que foram submetidos a ela.
“O que fizemos foi desenvolver uma variante técnica dessa cirurgia, de maneira que, num primeiro momento, o coração doado seja usado como terapia para a hipertensão pulmonar e, ao final, substitua o coração doente”, diz o Dr. Fábio Gaiotto, cirurgião cardiovascular que criou a técnica.
“O tratamento da hipertensão pulmonar é complexo. Em alguns casos, a única terapia possível é através de um ventrículo artificial, que é um equipamento de difícil acesso no mundo pelo seu alto custo. Por isso desenvolvi uma técnica que pode ser uma saída para esses pacientes e nós, como centro de pesquisa, conseguiremos ensiná-la para outros médicos no Brasil e no mundo”, afirma o cirurgião, que também é chefe da equipe cirúrgica de transplante de coração do InCor.
Vivendo com dois corações
Vítima de infarto em fevereiro de 2020, quando estava no auge do stress com seu trabalho de conclusão de Doutorado, Lincon teve que ser submetido à implantação de três stents em seu coração. A pandemia forçou a parada no tratamento e, quando retornou ao médico, descobriu que estava com insuficiência cardíaca congestiva (ICC) grave nível 3, em uma escala em que a 4ª posição é considerada terminal. Nesse momento, o médico orientou tratamento com medicamentos e alertou sobre a possibilidade de, no futuro, ele vir a precisar de transplante. O futuro chegou muito mais rápido do que ele imaginava. O diagnosticado de hipertensão pulmonar associada à ICC piorou seu estado de saúde, até que em 7 de junho ele teve que ser internado no InCor.
A hipertensão nos pulmões é uma doença grave, que costuma acometer pacientes jovens, com idade entre 40 e 50 anos, e que acarreta alta mortalidade – mais de 50% dos pacientes morrem ao cabo de dois anos e meio, se não forem tratados. Quando está associada à insuficiência cardíaca grave, que demanda transplante de coração como terapia de sobrevida, ela é ainda mais agressiva, a ponto de ser um fator de contraindicação para a cirurgia.
Era exatamente essa a situação que se encontrava Lincon, quando soube que o Dr. Fábio Gaiotto estava pronto para experimentar uma nova técnica para salvar pacientes na condição em que ele estava.
Em julho deste ano, ele fez a primeira etapa da cirurgia de dois corações e, em outubro, a segunda fase em que seu coração doente foi removido.
“Você vai progredindo (após a cirurgia) e vai entendendo, até que percebe que está com dois corações mesmo. A primeira vez que eu vi o ecocardiograma, vi os dois corações batendo. Aquilo era muito impressionante não só pra mim, mas para maioria dos médicos, enfermeiros, equipe de exames laboratoriais”, afirma o paciente.
Lincon respondeu tão bem ao tratamento que já com três meses da primeira etapa (frente aos seis meses previstos na pesquisa), a pressão interna do seu pulmão estava normalizada, dando sinal verde para a realização da segunda fase do tratamento.
Técnica em duas fases
Gaiotto trabalhou durante três anos no desenvolvimento da técnica inovadora, realizada em caráter de pesquisa clínica pelo InCor. A técnica tem duas etapas. Na primeira, acontece a implantação de um novo coração sadio de doador, de forma heterotópica, ou seja, na posição contrária à do coração nativo, no tórax do paciente.
O novo coração é conectado tanto em artérias quanto em partes do coração antigo. Sua função, no novo sistema de tratamento, é auxiliar na diminuição da pressão arterial no pulmão doente, de forma semelhante ao que costuma acontecer com os ventrículos artificiais de última geração. O coração doente também sofre alterações de fluxo, para se adaptar ao novo sistema e facilitar as manobras da segunda cirurgia.
O protocolo prevê que depois de seis meses do funcionamento ordenado dos dois corações, a pressão pulmonar está normalizada. Nesse momento, entra em ação a segunda etapa da técnica, chamada de “autotransplante”, que é a mais difícil e complexa.
Trata-se de retirar o coração doente, colocando o coração sadio doado na posição normal, que antes era ocupada pelo coração que foi retirado. Essa manobra exige uma rotação de 180 graus do órgão para coloca-lo na nova posição, além de costuras cirúrgicas de suas artérias e veias, de maneira a restabelecer o fluxo natural da circulação cardiopulmonar.
Desse momento em diante, o paciente passa a ter a vida normal de uma pessoa com o coração transplantado. Nessa condição, ele salta de uma expectativa de vida de três meses para uma que pode chegar a mais de 20 anos com boa qualidade, diz o Dr. Gaiotto.
“O Lincon teve a confiança de ser o primeiro a participar dessa cirurgia, e seu quadro evoluiu tão bem que pudemos dar alta para ele, com a expectativa de que a sua recuperação o leve a retomar aos poucos suas atividades físicas, sociais e de trabalho”, diz o médico.
“Optando pelo coração mecânico, eu optaria somente por me ajudar. Porém dentro desse novo protocolo de cirurgia, eu sabia que eu poderia ajudar outras pessoas nas mesmas condições que eu. Então isso pesou muito na minha decisão”, relembra Lincon.
Acompanhe o vídeo com os relatos do paciente e do corpo clínico envolvido no caso: