“Se eu soubesse hoje o que sei sobre os efeitos da cloroquina, nunca teria deixado meu pai tomar esse medicamento”. O relato é da jovem Jaqueline Almeida Trindade, que acompanhou a luta do pai Sérgio Trindade contra a Covid 19, mas há uma semana ele perdeu a batalha.
Jaqueline conta que o pai, mesmo sendo portador de hipertensão, fez uso da substância sob prescrição médica, mesmo a família alertando a equipe que o acompanhava sobre a doença e as fortes dores no peito sentidas após fazer uso da substância. “Foram cinco dias de uso da cloroquina e nós avisamos aos médicos que meu pai estava sentindo fortes dores no peito, mas eles insistiam em dizer que era por causa da presença do vírus no pulmão dele. Só quando um médico analisou o eletrocardiograma, percebeu o agravamento do caso e disse que nunca teria receitado cloroquina ao meu pai. Depois disso, não conseguimos mais acompanhar o caso, porque meu pai foi direto para UTI, sem chance de fazer o segundo eletro para analisar se a doença havia estagnado. Já era tarde demais”, se emociona a jovem.
No momento em que o país supera mais de 23 mil mortes por Covid 19 e a taxa de ocupação total dos leitos de UTIs para a Covid-19 passa de 77%, a história de Jaqueline se confunde com as de outras milhares de pessoas que buscam alternativas para a tratamento e cura da doença. É nesta parcela da população que o consumo da cloroquina vem crescendo de forma significativa, mas a falta de uma comprovação científica sobre a eficácia da droga e seus efeitos colaterais estão no centro dos debates das autoridades de saúde de todo o mundo.
O último estudo acerca da substância, publicada pelo “The Lancet”, sugere que tanto a Cloroquina quanto a Hidroxicloroquina não são eficazes contra o Coronavírus e ainda podem ser prejudiciais na maioria dos casos. A publicação destaca os resultados obtidos pelos cientistas no primeiro estudo em larga escala já feito com as duas substâncias. Com dados fornecidos por mais de 671 hospitais dos cinco continentes em mais de 90 mil pacientes, o estudo destaca o uso das medicações e os resultados mostraram que além da aparente ineficácia, elas podem aumentam os riscos de mortes.
O estudo reforça autoridades a desaconselharem a prescrição de ambos. Para o infectologista e consultor médico do Grupo Sabin, Dr Alexandre Cunha, Vice Presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, os dados obtidos a partir deste e de outros estudos tornam claro que as medicações não devem ser usadas de maneira empírica fora de um estudo clinico. “A pesquisa divulgada pela The Lancet levanta a questão de possível aumento de risco 34 a 45% maior de morte de Covid-19 em pacientes tratados com estas drogas. Vale a pena expor milhares de pessoas a este possível risco, sem nenhum estudo que mostre sua eficácia? O fato é que com as informações que temos hoje, não deveríamos administrar hidroxicloroquina a ninguém com Covid-19”, explica o especialista.
A cloroquina e a hidroxicloroquina são indicadas para pacientes com malária, artrite reumatóide e lúpus. “Sem nenhuma eficácia comprovada, é irresponsável e antiético aplicar estas substâncias com o conhecimento que temos agora”, alerta o médico, que completa destacando que o uso de hidroxicloroquina, assim como outros remédios, pode aumentar o risco de arritmias cardíacas e agravar quadro de pacientes. “Hoje sabemos que mais de 99% dos casos no Brasil têm boa evolução sem estas medicações. Ou seja, submeter pessoas ao uso de uma droga que pode proporcionar uma série de efeitos colaterais não é uma opção nem mesmo razoável”, finaliza.
NOTA DA AMB SOBRE TRATAMENTO PRECOCE DE COVID-19 COM USO DE CLOROQUINA E HIDROXICLOROQUINA
Diante das novas “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”, publicadas na quarta-feira (20), pelo Ministério da Saúde, e das consultas que a Associação Médica Brasileira (AMB) vem recebendo da comunidade médica e da mídia sobre os impactos na saúde dos pacientes e na atuação dos médicos, consideramos que as referidas orientações:
a) permitem que, no âmbito do Sistema Único de Saúde, os pacientes ali assistidos disponham da mesma oferta de medicamentos, em todas as fases do tratamento, que os pacientes atendidos pelo setor privado já dispõem;
b) preservam a responsabilidade e a autonomia do médico na avaliação da pertinência de utilização off-label de medicação prescrita há décadas em casos de malária e doenças autoimunes e cujos efeitos colaterais são limitados e amplamente conhecidos nos tratamentos citados, reiterando a necessidade de consentimento livre, esclarecido e informado por parte do paciente;
c) respeitam o Parecer nº 4/2020 do Conselho Federal de Medicina, que disciplina o uso off-label da cloroquina e da hidroxicloroquina durante a pandemia de coronavírus, publicado em 16 de abril de 2020;
d) alertam sobre a falta de medicamentos comprovadamente eficazes e reiteram a excepcionalidade do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no cenário da pandemia, assim como a inexistência de pesquisas aprofundadas e conclusivas sobre os benefícios ou segurança do medicamento nas diversas fases da doença Covid-19.
A Associação Médica Brasileira acompanha estudos e pesquisas envolvendo o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e de outras drogas no tratamento da Covid-19, e irá incorporar as novas evidências científicas às Diretrizes Médicas que a entidade tem produzido durante a pandemia para auxiliar os médicos brasileiros a enfrentar os efeitos do Coronavírus.
“Protocolo do governo não obriga médico e nem paciente a usar cloroquina e hidroxicloroquina em caso de Covid-19”, afirma professor
O Governo Federal divulgou protocolo que aconselha o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para todos os pacientes com Covid-19, inclusive com sintomas leves. O documento do Ministério da Saúde recomenda o uso pela rede pública de saúde. Na opinião do advogado e professor do Curso de Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde do Hospital Albert Einstein, Mario Barros Filho, sócio do escritório BFAP Advogados, a ação do governo não interfere na autonomia dos médicos de receitar ou não os medicamentos.
“O médico não é obrigado a prescrever. Existe um princípio de bioética muito importante que é a autonomia. Ele serve para nortear a relação médico-paciente, nas duas pontas. Nenhum médico pode ser obrigado a fazer o que não concorda, inclusive por força do Código de Ética Médica. E o paciente sempre pode se negar, como ocorre com todos os outros tratamentos. O que eu sempre venho a sugerir em situações complexas como essa é que o médico discuta a possibilidade com o paciente e emita sua recomendação baseada no caso concreto. Um protocolo serve para dar uma linha geral e não ser imposto de cima para baixo. Lógico que há também uma possibilidade de um paternalismo nos casos graves, mas isso não deverá ser a regra”, afirma o especialista.
Mario Barros Filho também ressalta que o médico não deverá ser responsável pelo resultado do uso ou não dos medicamentos indicados no protocolo. “Acredito ser difícil traçar um nexo de causalidade tão direto e seguro a respeito do falecimento de um paciente e a negativa do médico em prescrever um tratamento autorizado por um protocolo. Isso porque se um paciente deseja ser cuidado de acordo com a orientação de um protocolo e o seu médico discorda dessa vontade, deveria o primeiro procurar um outro médico e o segundo alegar objeção de consciência para deixar de tratar desse paciente. Logicamente, isso só seria válido para situações em que o paciente não se encontra em estado grave de vida ou presente indícios de perigo imediato. Para apurarmos a responsabilidade, ademais, seria necessária a avaliação do caso concreto para a identificação de uma conduta culposa do médico (dolo, imperícia, imprudência ou negligência)”, conclui o professor.
Liberação da cloroquina vai de encontro aos princípios básicos do SUS
O médico neurocirurgião Dr. Fernando Gomes, professor livre docente do Hospital das Clínicas de SP, a frente do atendimento no SUS há quase 20 anos, explica porque a liberação da cloroquina vai de encontro aos três princípios fundamentais do sistema de saúde: equidade, integralidade e universalização.
Embora os estudos preliminares mostrem que existem sim benefícios, enquanto outros mais bem elaborados não comprovaram a eficácia do uso da cloroquina, a grande polêmica que gira em torno da medicação ainda não mostrou que a droga não seja benéfica para o tratamento da Covid-19 e, principalmente, para estágios inicias da doença. Para Dr Fernando Gomes, diante da situação em que a pandemia se encontra – sem vacina e com possível falta de vagas em UTIs e ventiladores para todos os casos graves – se há um remédio que seja capaz de inibir a entrada do vírus na célula e modular a resposta inflamatória (evitando o agravamento da doença) é, no mínimo, justo e humano permitir que toda a população tenha acesso a tal medicamento.
“Estou falando em uso da medicação desde que seja devidamente prescrita e acompanhado por um médico já que sabemos todo remédio traz consigo benefícios e riscos (efeitos colaterais) e é papel do médico manejar esta situação. Lembrando que não existe tratamento para nenhuma doença do mundo que seja 100% eficiente e livre de possíveis complicações – isso é a realidade, isso é a medicina. O povo brasileiro pode ficar feliz porque essa liberação vai de encontro com os princípios fundamenteis do SUS (equidade, integralidade e universalização)”, revela o médico que explica os princípios básicos da saúde:
- EQUIDADE: igualdade e a justiça no atendimento a pacientes de acordo com as necessidades de cada paciente individualmente;
- INTEGRALIDADE: integração de ações que incluem promoção da saúde como a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação;
- UNIVERSALIZAÇÃO: determina que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação – independentemente de sexo, raça, ocupação, ou outras características sociais ou pessoais – tenham direito ao acesso às ações e aos serviços de saúde.