O excesso de judicialização no Brasil é um fato incontroverso e que tem sido retratado, ano após ano, pelo Relatório Justiça em Números elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Segundo o referido relatório em 2019 haviam quase 77,1 milhões de processos pendentes de decisão, apesar dos 35,4 milhões de casos resolvidos. Ou seja, tivemos o absurdo número de mais de 100 milhões de processos tramitando ao longo de todo o ano.
Essa realidade também possui reflexos na área da saúde, que foi objeto em 2019 de estudo específico elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper por solicitação do CNJ. No estudo chamado “Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução”, constatou-se que, entre 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou um aumento de 130%, enquanto, no mesmo período, o número total de processos judiciais cresceu cerca de 50%.
Verificou-se, ainda, que a judicialização é crescente tanto no sistema público quanto no privado, observando-se uma elevação crescente e consistente ao longo da última década. Além disso, constatou-se uma maior relevância na judicialização no setor privado, também crescente ao longo do tempo.
É certo que essa situação tende a se agravar em decorrência dos impactos da pandemia do Covid-19. Há reflexos de curto, médio e longo prazo para a rede de prestadores de serviço, operadores de plano de saúde e beneficiários, que afetarão o equilíbrio econômico-financeiro dos diversos contratos celebrados, base da prestação adequada desse serviço essencial.
Alguns desses impactos, inclusive, têm sido mensurados por boletins periódicos da Agência Nacional de Saúde – ANS, que aponta, por exemplo, que no mês de fevereiro de 2021 houve um aumento de 31,4% no número de reclamações nos canais de atendimento da Agência. Ou seja, a situação, já considerada por muitos como insustentável, tende a se agravar.
O caminho para se resolver esse problema tem sido apontado há muito tempo pelo próprio Poder Judiciário, pelo menos desde a edição da Resolução CNJ nº 125/2010, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses.
Esse documento teve por finalidade principal romper com o dogma de que o Judiciário seria o único caminho para a solução de controvérsias. Foi trazido, assim, para o país o chamado sistema multiportas, por meio do qual se defende a necessidade de se analisar qual o melhor caminho para a solução de determinado conflito, estimulando o uso, por exemplo, da conciliação e da mediação, inclusive no âmbito extrajudicial.
Essa visão acabou se consolidado no Código de Processo Civil, que em seu artigo 3º, § 3º, determinou que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual dos conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público.
A mediação, especialmente, ganhou impulso adicional com a publicação da lei nº 13.140/2015, trazendo maior segurança jurídica e sistematização para a utilização desse mecanismo.
De acordo com o conceito legal, a mediação é uma atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.
Trata-se, pois, de um procedimento que exige a presença de um profissional bastante capacitado e que vai se dedicar à criação de um ambiente favorável ao acordo entre as partes, distinguindo-se totalmente do procedimento de conciliação judicial a que a maior parte das pessoas estão acostumadas.
Algumas das vantagens para a utilização do procedimento são a economicidade, a celeridade, o ambiente favorável à geração de novas opções, o controle das partes sobre o resultado, a confidencialidade, a informalidade do procedimento e a sua reconhecida eficácia.
A maior eficácia da mediação está bastante relacionada à própria técnica utilizada no procedimento, uma vez que as partes sabem que o resultado foi construído com sua participação ativa, gerando um maior engajamento e comprometimento com o cumprimento do acordo. Nessa linha, é papel do mediador checar se as partes têm plena consciência do que foi acordado e estão convencidas de que o acordo atendeu realmente aos seus interesses.
Importante notar que a mediação pode ser judicial, quando realizada no âmbito do Poder Judiciário, ou extrajudicial, quando desenvolvida por meio de mediadores designados ad hoc ou no âmbito da câmaras privadas de mediação.
Há, ainda, um número cada vez maior de plataformas que oferecem a possibilidade de desenvolvimento da mediação pela internet, o que está expressamente autorizado pelo artigo 46 da Lei de Mediação.
Uma dúvida bastante frequente diz respeito à possibilidade de utilização da mediação na área de saúde, pois envolveria muitas vezes direitos considerados indisponíveis.
Deve-se observar, contudo, que várias dessas questões são resolvidas diretamente com a operadora do plano de saúde ou com a rede de prestadores de serviços diretamente, sem qualquer tipo de questionamento. A experiência demonstra que, se a pessoa sai satisfeita com o resultado final, a chance de levar a questão para o Judiciário reduz substancialmente.
Importante registrar ainda que o artigo 3º, § 2º, da Lei de Mediação permite que direitos indisponíveis também sejam submetidos à mediação, com posterior homologação judicial. Dessa forma, havendo qualquer tipo de dúvida, é possível buscar apenas a homologação judicial do acordo já construído com o auxílio do mediador.
Apesar de todas as suas vantagens, vê-se que a mediação ainda tem sido muito[CVS1] pouco utilizada no Brasil, inclusive na área de saúde. E os motivos para isso são vários. Apontemos alguns.
Primeiro, ainda prevalece no Brasil a mentalidade de que o Judiciário é o único ou o principal caminho para a solução de controvérsias, mesmo que essa visão não encontre mais amparo na legislação. As mudanças culturais geralmente são lentas, e não podem ser simplesmente impostas pela Lei.
Segundo, é grande ainda o desconhecimento das pessoas em geral, e até dos próprios advogados, quanto à forma adequada de utilização dos mecanismos consensuais de resolução de disputas. Poucos profissionais conhecem esses procedimentos e mais raros ainda são os que sabem apresentá-los aos seus clientes. Se nenhum dos seus contratos possui até hoje cláusulas de mediação e de arbitragem, isso já deveria lhe servir de alerta.
Terceiro, boa parte dos modelos de remuneração dos profissionais da área jurídica ainda são baseados no volume de ações judiciais, e não na capacidade de prevenção e redução de litígios, ou mesmo de realização de bons acordos.
De toda forma, o que não se pode esperar é que essa situação seja revertida sem que haja disposição para rever procedimentos e adotar novas práticas. Não é razoável crer que, continuando a fazer o que sempre fizemos nessa área, vamos conseguir obter resultados diferentes. Esperamos seja essa mais uma mudança importante impulsionada pela pandemia, mas não só por ela.
Carlos Alberto Vilela Sampaio é árbitro, diretor-geral e sócio da CAMES Brasil, advogado, sócio de Spadoni, Carvalho e Cunha Sociedade de Advogados, doutor e mestre em Direito Internacional pela USP
Ana Paula Oriola de Raeffray é árbitra e sócia da CAMES, advogada, sócia do escritório Raeffray Brugioni Advogados, mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP