Nada mais natural que, em meio à pandemia, os hospitais e profissionais de saúde tenham precisado de alguns meses para atender os casos prioritários, reorganizar as rotinas e voltar as atenções para pacientes de outras especialidades. No início do ano, não havia como prever a rápida explosão dos casos no Brasil, e pior, que os números seguiriam em patamares tão elevados por tanto tempo. Menos ainda, que o distanciamento imposto pelo vírus geraria tantas restrições na vida diária, seja no trabalho, em casa ou nos hábitos saudáveis, como os exercícios físicos.
Muita gente que era ativa precisou interromper o cuidado com o condicionamento. Entre os meus pacientes, estimo que apenas 20% dos que treinavam ainda o fazem no mesmo nível de intensidade ou frequência. Alguns se exercitam mais, mas com intensidade menor, por não terem os aparelhos ou o espaço adequado, correndo risco de lesão secundaria em tendões e músculos. Com a reabertura de parques e academias em São Paulo, também há perigo para quem tentar voltar ao mesmo ritmo de antes à força, sem o preparo adequado. Entre os idosos, ainda há um risco a mais: devido à baixa exposição ao sol e a restrição de caminhadas, cresce a incidência de osteoporose, aumentando a chance de fraturas.
Nos primeiros meses da pandemia, médicos e pacientes, com o receio natural de contraírem o vírus, optaram por alterar as datas de consultas e procedimentos não urgentes, atrasando assim todo o tratamento médico. No hospital em que trabalho, o impacto na redução dos atendimentos ortopédicos foi de 60%, em média, entre os meses de março e julho.
A vantagem é que, agora, nas cidades em que a situação não é mais crítica, os hospitais já podem oferecer um fluxo seguro para seguir com os tratamentos, exames de rotina, avaliações e acompanhamentos, e até ações cirúrgicas de grande porte. Algumas medidas possíveis são oferecer orientações aos pacientes por telefone, testagem pré operatória e medicação em regime drive-thru no estacionamento do hospital e andares exclusivos para pacientes que vão operar. Isso, claro, além do distanciamento nos agendamentos e nas salas de espera, e todas as precauções de higiene já rotineiras nesses ambientes.
Dessa forma, recentemente, foi possível realizar um procedimento complexo e raro no Brasil: a reconstrução do úmero proximal com prótese reversa, associada a aloenxerto de banco de tecidos. Para simplificar, trata-se de uma reconstrução óssea na região do ombro, com objetivo de restaurar o comprimento do membro, melhorar o posicionamento da articulação e, assim, diminuir os incômodos e gerar ganho de movimentos do ombro. A cirurgia chegou a ser suspensa por três meses devido à pandemia, o que gerou piora da dor e grande limitação para as atividades habituais da paciente.
A paciente também apresentava tumor ósseo do úmero esquerdo, condição que foi operada previamente. O tumor, que comprometia toda a parte superior do membro responsável pela articulação do ombro, foi ressecado e substituído na ocasião por uma endoprótese parcial. A grande novidade foi a troca desta prótese por um osso humano, captado via Banco de Tecidos de São Paulo, instituição ligada à Santa Casa de São Paulo e à Faculdade de Medicina da USP, que faz o processamento do osso e todos os testes de preparo, tornando-o apropriado para ser utilizado com segurança em um novo receptor.
Normalmente, essa técnica é utilizada em perdas ósseas, como resseções de tumores ósseos e sequelas de fratura. No entanto, quando existe a falha óssea na parte proximal do úmero, aumenta muito o desafio, pois é nesta região que o osso articula com a escápula, gerando os movimentos que conhecemos do nosso ombro. Esse tipo de procedimento já é comumente realizado em grandes serviços internacionais de cirurgia de ombro, principalmente nos Estados Unidos, e em alguns serviços universitários nacionais, mas é bastante inovador para um hospital privado.
A evolução da medicina nos mostra que, mesmo em meio a uma crise global de saúde como não se via há décadas, tratamentos e procedimentos complexos podem ser feitos com todo o cuidado que o momento merece. A retomada deve ser gradual e seguir uma série de barreiras de segurança que os hospitais certamente sabem aplicar, mas ela é essencial especialmente para pacientes que dependem de medicamentos de uso contínuo ou de cirurgias. Continuem conversando com seus médicos, porque estamos dispostos a encontrar a melhor forma de solucionar o seu problema.
Dr. Rômulo Brasil Filho é ortopedista do Hospital Santa Catarina, em São Paulo (SP)