Após ter desempenhado um papel fundamental durante a pandemia e, por consequência, ter sido alçada à condição de Lei no final do ano passado, a Telemedicina vive agora um momento de reflexão a respeito das tendências de sua utilização e como ela pode ser mais bem aproveitada em tempos de pós pandemia.
O tema foi um dos destaques da Feira Hospitalar, um dos maiores eventos do setor no país, que aconteceu no final de maio em São Paulo, e terá como um dos principais debates o painel “Telessaúde Hospitalar – Telessaúde Integrada e Bem-Estar” promovido pela Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde (ABTms) e pela Disciplina de Telemedicina do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP.
Por um lado, a parte do copo “meio cheia”, cita a favor da tecnologia, o fato de que entre 2020 e 2021 foram realizados mais de 7,5 milhões de atendimentos remotos no Brasil (*), envolvendo 52,2 mil médicos, psicólogos e terapeutas com um índice de resolutividade de 91% dos casos, e que trouxe um valor gigante para todos os beneficiários “anywhere“.
Mas apesar de todo este aumento do potencial de atendimento aos pacientes, também são oportunos os apontamentos para a parte do copo ‘meio vazia’ feita por alguns players do setor que chamam a atenção para o fato de que, a alternativa de atendimento digital tem provocado uma enxurrada de solicitações de consultas e exames desnecessárias, trazendo grandes preocupações para as operadoras de saúde, que são obrigadas a arcar com os custos. Isto sem falar nas inúmeras possibilidades de abusos e fraudes que o novo método tem possibilitado.
Com um histórico de dificuldades hercúleas para conseguir acesso aos serviços médicos ao longo dos anos, agora que a consulta está a dois cliques de distância, o brasileiro não está pensando duas vezes em tomar as providências para estar em contato com este profissional sempre que ‘achar’ necessário, mesmo que num momento seguinte seja revelado que não era.
A dificuldade de ter a certeza de que o profissional de saúde está atendendo realmente a quem paga pelo serviço é uma outra questão levantada com muita frequência pelos especialistas do tema. Afinal, é relativamente possível trocar de lugar com outra pessoa em frente a uma tela logo após ter passado por todos os mecanismos de verificação de identidade das empresas que realizam este tipo de atendimento.
Existem ainda as formas mais futuristas de fraudar sistemas de autenticação como a chamada deepfake, que é a capacidade de plotar uma imagem digital sobre outra, fazendo com que os traços analisados pelos sistemas de segurança permitam a quem não deve o acesso a ambientes protegidos.
Falar na parte do copo meio vazia da telemedicina parece ser uma quebra de expectativa, ou uma atitude de nadar contra a maré, mas é um movimento justamente na direção contrária.
Não resta dúvida de que a Telemedicina já consolidou sua condição de ferramenta indispensável nos esforços para alcançar patamares cada vez maiores de qualidade de vida para as pessoas. O fato de proporcionar um custo inferior em relação ao atendimento presencial, além de um alcance mais fácil a áreas remotas, representa importantes motores para a democratização do acesso à saúde.
Além disso, a possibilidade de associar este atendimento remoto à inteligência artificial e, com isso, viabilizar a automatização de processos como triagem, análise de dados e diagnósticos simples permite um entendimento de que sua contribuição está apenas começando.
Mas, olhar para a parte meio vazia da Telemedicina se torna importante no sentido de que se comece imediatamente a buscar soluções para fechar esses vazamentos por onde os benefícios trazidos por esta tecnologia podem escorrer silenciosamente até provocar grandes prejuízos para todo o sistema de saúde, o que se reverteria numa frustração comparada às oportunidades que ela oferece.
Neste sentido, é fundamental aprofundar o desenvolvimento de soluções baseadas em inteligência de dados para, sem comprometer a experiência do paciente, proporcionar uma aproximação cada vez mais intensa do estágio no qual a telemedicina seja usada por quem realmente tem direito, no momento em que ela é necessária, de forma a obter o melhor e mais rápido atendimento possível.
Só assim o copo da telemedicina estará totalmente cheio.
Marco Antunes é Vice-presidente de Inteligência para Saúde na Neurotech, uma empresa B3
(*) Dados da Associação Brasileira de Empresas de Telemedicina e Saúde Digital