No dia 3 de maio, o Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa em que 31% dos brasileiros concordam com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em 2018, esse percentual era de 41%. Hoje, 39% das pessoas concordam que a lei deve continuar como está. 4 anos atrás, o número era de 34%, ou seja, hoje cerca de 4 em 10 brasileiros consideram isso.
Além disso, na edição de 2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos, 31% dos brasileiros responderam que o aborto deve ser permitido sempre que uma mulher desejar. A média global foi de 46%. Esse número coloca o Brasil como o quinto país menos favorável à legalização total do aborto em um conjunto de 27 países.
Para alavancar essa discussão, no dia 8 de maio, foi divulgado a publicação de uma cartilha do Ministério da Saúde que afirma que “todo aborto é crime”. O documento tem como editor geral o Secretário Nacional de Atenção Primária, Raphael Camara, e defende que casos de aborto previstos em lei devem ser comprovados por “investigação policial”.
A cartilha publicada afirma que: “Não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”.
É interessante analisarmos esse ponto já que essa é uma afirmação sem lógica. A excludente de licitude, nada mais é, do que quando está presente certos elementos que excluem que o fato seja crime. Logo, um aborto com excludente de licitude, é um aborto lícito. Um aborto legal.
Tanto que, quando ensinamos sobre aborto na sala de aula, dizemos que o “aborto é uma interrupção de gravidez com morte do produto da concepção”. Só que, quando falamos dessa circunstância do ato de abortar, especificamos que nem sempre o aborto é criminoso. Ele pode ser natural, acidental, legal ou criminoso. O aborto é uma categoria ampla.
Se todo aborto fosse ilegal, também seriam considerados ilegais os abortos naturais e acidentais. Ou seja, puniríamos uma mulher que tenha um aborto natural ou se ela cai da escada acidentalmente e tem um aborto. Não é lógico fazermos a equivalência de que todo aborto é criminoso porque existem diferentes formas do gênero aborto.
Como funciona a lei?
Dentro do aborto criminoso, existem algumas subespécies: o auto aborto que está na primeira parte do art. 124; o consentimento para o aborto que está na segunda parte do art. 124; a provocação do aborto com o consentimento da gestante que está no art. 126; e a provocação do aborto sem o consentimento da gestante que está no art. 125.
O art. 128 do Código Penal estabelece as hipóteses em que o aborto é legal: ou seja, se não houver outro meio para salvar a vida da gestante, e se a gravidez resultar de estupro – quando isso for procedido com o consentimento da gestante, ou quando ela for incapaz com as autorizações dos seus representantes legais. Também tem a hipótese que foi reconhecida há alguns anos pelo Supremo Tribunal Federal, que é o aborto em caso de fetos anencéfalos.
Nós temos duas hipóteses de abortos legais, da mesma forma que temos quatro hipóteses de aborto criminoso. No caso dos abortos legais, temos o aborto necessário terapêutico, que está previsto no inciso 1 do art. 128. Nessa modalidade, o aborto é feito para salvar a vida da gestante, quando não existe outro meio além desse para salvar a vida dela e o médico realiza o pedido para isso.
O que mais está sendo discutido nessa cartilha é o aborto sentimental e humanitário, que está previsto no inciso 2 do art. 128. Se exige três requisitos: que a gravidez seja resultado de estupro; que haja o consentimento da gestante ou do seu representante legal se ela for incapaz; e que seja realizado por um médico. Ou seja, nesse caso, não é um aborto legal quando a vítima realiza um auto aborto em si mesma.
Dentro disso, é importante entendermos que, em nenhuma hipótese de aborto legal, exige autorização judicial para fazer o aborto. Com essa cartilha e medidas, o que está se buscando fazer é criar uma burocratização para que venha cavar uma espécie de autorização e investigação, mas não existe isso. Não existe essa autorização judicial.
No caso do aborto humanitário, desde sempre nunca foi necessário provar a pré-condenação do estuprador, ou seja, ele pode ser identificado ou não. Isso nunca foi solicitado. O segundo ponto é que para a realização do aborto humanitário bastava, até então, que o médico se convencesse da ocorrência da violência sexual por meio de exames ou pela cópia do boletim de ocorrência.
O que está se tentando fazer é burocratizar e inviabilizar um aborto legal. Um aborto que é garantido em lei, inclusive chamado de ‘aborto humanitário’.
Um ponto importante para mencionar é que, com essa burocratização e investigação prévia, estão se criando condições para garantir o que é estabelecido em lei no Código Penal. O mais absurdo é que o Governo utiliza da narrativa que visa proteger os médicos que fazem isso.
Mas a questão curiosa é que, se o médico age fazendo o uso de um boletim de ocorrência, acobertado que é uma hipótese de aborto legal/humanitário, o médico não estaria cometendo um crime. Ele já estaria sob o manto de que está agindo através da hipótese de aborto legal.
Na realidade, isso seria uma hipótese da descriminante putativa do art. 20, do parágrafo 1, do Código Penal. Ou seja, nesse caso o próprio médico estaria acobertado de não ser imputado um crime. Ele estaria, ali, diante de uma discriminante.
O que está por trás dessa cartilha?
Na realidade, devemos entender que a burocratização e criminalização do que é entendido como legal, vem de um objetivo ideológico que está por trás no Ministério da Saúde e do Governo Federal. E qual é esse motivo?
Ele vem desde 2020, quando foi alterada a portaria do aborto. A portaria nº 1.145 para a portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde, onde se criou a necessidade de investigação e burocratização para o aborto legal que é respaldado na cartilha ditada pelo Ministério da Saúde.
Não podemos ser ingênuos, devemos lembrar que o Brasil é um país muito conservador. Qual a tentativa que está por trás desse momento? Em ano de eleição, claramente é possível ganhar votos e aderência. O Governo atual está mal nas pesquisas e, como o aborto sempre foi uma pauta que nunca pôde ser defendida abertamente – já que vivemos em um país conservador e de objetificação do corpo das mulheres, a cartilha se torna um atrativo para se aproximarem de leitores que tem essa mesma perspectiva e são contra o aborto.
Enquanto todos os países da América Latina estão descriminalizando o aborto, o Brasil e, em especial, o Governo Federal está indo em desencontro com a proteção dos Direitos Humanos. Isso é tão real que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), o nosso órgão máximo constitucional, têm adotado posturas contrárias ao Ministério da Saúde.
Por exemplo, tivemos o entendimento de que se adicionou aos abortos legais o caso de aborto em caso de fetos anencéfalos. Além disso, há alguns anos também tivemos uma decisão do STF, em um HC, em que se reconheceu a ordem do pedido de Habeas Corpus no caso de aborto, antes do terceiro mês da gestação.
Ou seja, quem é responsável por aferir os requisitos de legalidade, está indo na posição contrária do Ministério da Saúde. O que nos prova que, cada vez mais, tudo isso trata-se de uma questão ideológica.
Mayra Cardozo é advogada especialista em Direitos Humanos e Penal, também é mentora de Feminismo e Inclusão e líder de empoderamento