Em pauta a carreira médica: entidades pedem exame de proficiência e formação de qualidade

Nunca houve um crescimento tão grande da população médica no Brasil num período tão curto de tempo. Em pouco menos de cinco décadas, o total de médicos aumentou 665,8%, ou 7,7 vezes. Por sua vez, a população brasileira aumentou 119,7%, ou 2,2 vezes. No entanto, segundo entidades representativas do setor, esse salto não trouxe os benefícios que a sociedade espera.

Apesar de contar, em janeiro de 2018, com 452.801 médicos (razão de 2,18 médicos por mil habitantes), o Brasil ainda sofre com grande desigualdade na distribuição da população médica entre regiões, estados, capitais e municípios do interior.

Os dados constam da pesquisa Demografia Médica 2018, realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com o apoio institucional do CFM – Conselho Federal de Medicina e do Cremesp – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. O levantamento, coordenado pelo professor Mário Scheffer, usou ainda bases de dados da AMB – Associação Médica Brasileira, da CNRM – Comissão Nacional de Residência Médica, do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e do MEC – Ministério da Educação.

O Sudeste é a região com maior razão de médicos por mil habitantes (2,81) contra 1,16, no Norte, e 1,41, no Nordeste. Somente o estado de São Paulo concentra 21,7% da população e 28% do total de médicos do país. Por sua vez, o Distrito Federal tem a razão mais alta, com 4,35 médicos por mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro, com 3,55.

Carlos Vital. Foto: Elpídio Júnior

Na outra ponta estão estados do Norte e Nordeste. O Maranhão mantém a menor razão entre as unidades federativas, com 0,87 médico por mil habitantes, seguido pelo Pará, com razão de 0,97. “Há uma desproporção gritante entre as unidades da federação e entre as regiões: 39 cidades com mais de 500.000 habitantes concentram 60% dos médicos, enquanto 40% estão distribuídos no país para atender o restante da população”, pontua o presidente do CFM, Carlos Vital.

Diante do quadro, Vital apresenta propostas para uma melhor distribuição dos médicos. “Um ponto fulcral é a criação de uma carreira de Estado para o médico e demais profissionais de saúde, que dê segurança jurídica, permita a educação continuada, ofereça condições de trabalho e valorize o trabalho do profissional para que ele se fixe nas cidades do interior”, defende.

O aumento total registrado e a má distribuição dos profissionais pelo território nacional têm relação direta com o fenômeno da abertura de novas escolas e cursos de Medicina no Brasil. Considerando que a graduação em Medicina dura seis anos, sem praticamente haver evasão ou repetência entre os alunos, cada vaga oferecida em 2018 corresponderá a um novo médico, em 2024.

Neste ano, estima-se que serão 28.792 profissionais egressos das escolas (três vezes o número de 2004, quando foram registrados 9.299 novos médicos). Em duas décadas (com base nos números de 14 anos atrás), o crescimento previsto é de 200% no número de novos registros.

Dr. Lincoln Lopes Ferreira

Para o presidente da AMB, Lincoln Lopes Ferreira, a Demografia Médica ajuda a sociedade a compreender melhor a distribuição dos médicos no país, já que o que se tinha até então eram dados e números dispersos, que não permitem uma visão do todo. “A atualização constante dessas informações nos fornece insumos na busca de soluções para as questões da medicina, do médico e da saúde no Brasil, com base em análise de fatos e dados, e não puramente em ideologias”, afirma.

Ferreira enfatiza que a Demografia Médica 2018 consolida o entendimento de que não há falta de médicos no país, mas de condições, estratégias e gestão para todas as regiões onde há necessidade. “Não precisamos de médicos importados, precisamos de carreira médica de Estado e de condições de trabalho nas mais diversas localidades”, defende.

Contudo, na avaliação das entidades médicas, o grande número de profissionais enfrenta um grave problema: existem deficiências nas políticas públicas que geram maior concentração de médicos nas grandes cidades e no litoral, em especial nas áreas mais desenvolvidas, e nos serviços particulares em detrimento do SUS – Sistema Único de Saúde.

A manutenção desse problema, na avaliação das lideranças médicas, decorre da ausência de políticas públicas que estimulem a migração e a fixação dos profissionais nas áreas mais distantes dos grandes centros, de modo particular no interior das regiões Norte e Nordeste.

Dentre os problemas, estão a precariedade dos vínculos de emprego, a falta de acesso a programas de educação continuada, a ausência de um plano de carreira (com previsão de mobilidade) e a inexistência de condições de trabalho e de atendimento, com repercussão negativa sobre diagnósticos e tratamentos, deixando médicos e pacientes em situação vulnerável.

A secretária-executiva da CNRM, Rosana Melo, destaca que o Brasil vive uma situação paradoxal, “em que faltam médicos e não faltam médicos”. Disse, também, que o governo está atento para que a formação de especialistas atenda às necessidades do país.

Avaliação

Há muito tempo, a AMB vem se posicionando sobre a necessidade de uma avaliação que preserve o cidadão do risco de ser atendido por um médico com formação deficitária. As escolas médicas precisam ser avaliadas, e os alunos também. E quem não está preparado não pode exercer a medicina.

“Precisamos de um filtro minimamente razoável e seguro para evitar que profissionais malformados entrem no sistema de saúde. Isso é condição fundamental para garantirmos um atendimento de qualidade à população”, alerta Ferreira.

Para a AMB, os estudantes de medicina ou mesmo os médicos recém-formados, diplomados pelas universidades, só podem ter licença para atuar (registro profissional no CFM) depois que forem aprovados pelo Exame Nacional de Proficiência em Medicina.

“Médico bem formado custa caro, mas malformado custa mais caro ainda. Ele é um risco para a saúde pública, pois está muito mais suscetível a erros e sobrecarrega o sistema: diagnósticos mal feitos geram exames desnecessários, medicação inadequada e aumento de internações. Já temos um sistema de saúde subfinanciado, que acaba ainda sendo sacrificado por conta deste quadro, que só vem aumentando”, argumenta.

Segundo o Datafolha, 91% dos brasileiros apoiam a criação de um exame para garantir a qualidade dos médicos. A pesquisa ouviu 4.060 pessoas acima de 16 anos. A margem de erro é de dois pontos para mais ou para menos. Dos entrevistados, 35% disseram que a qualificação dos médicos brasileiros piorou nos últimos anos.

Quase todas as entidades médicas são a favor de exame semelhante ao proposto pela AMB, mas há quem divirja do formato. No entanto, é quase unânime a concordância de que deve haver um “exame da ordem”, para os egressos dos cursos de medicina, como ocorre com os advogados há muito tempo. Os conselhos de medicina precisam a prerrogativa de não registrar o profissional que não tiver sido aprovado pelo Exame Nacional de Proficiência em Medicina. Hoje não há esta prerrogativa e mesmo os médicos que tiveram performance insuficiente nos exames, ou nem participaram deles, podem receber o registro profissional.

Para a AMB, é fundamental que o exame seja nacional e obrigatório. Além disso, o aluno não pode ser avaliado somente depois de concluído o curso: devem ser feitas avaliações seriadas, como é comum em diversos países, ao final do segundo, do quarto e do sexto anos. Isso permite que o estudante identifique seus pontos fracos e, junto com a escola, possa atuar para correção destas fragilidades. Desta forma, as próprias faculdades podem avaliar e corrigir os problemas identificados. “O exame também será importante para avaliação das escolas médicas, principalmente das que foram abertas sem as condições necessárias para formação de bons profissionais”, explica Lincoln.

Segundo a proposta, brasileiros ou estrangeiros formados em medicina fora do país também deverão passar pela mesma avaliação. E só depois de aprovados receberão o registro profissional para atuar como médico no território nacional. O exame só poderá ser feito depois de o médico ter passado pelo Revalida, processo do Ministério da Educação que avalia a adequação do curso feito no exterior aos parâmetros brasileiros.

Diversos exames semelhantes têm sido realizados por entidades médicas brasileiras, mas de forma isolada, como o do Cremesp e do Cremers. Os resultados são alarmantes. O último exame do Cremesp, divulgado em fevereiro deste ano, mostrou que 88% dos recém-formados não souberam interpretar uma mamografia; 78% erraram o diagnóstico de diabetes; e 75% não identificaram tratamento para hemorragia digestiva alta. Do total dos 2.636 egressos que fizeram a prova, 35,4% não alcançaram a nota mínima exigida – acerto de 60% das 120 questões de múltipla escolha.

Para viabilizar estas mudanças, principalmente com a segurança jurídica necessária, a AMB avisa que levará ao Governo Federal e ao Congresso uma proposta de Projeto de Lei em breve.

Novos cursos

No começo de abril, durante reunião do presidente, Michel Temer, com o ministro da Educação, Mendonça Filho, foi assinada portaria que impede a abertura de novas escolas médicas pelos próximos cinco anos, atendendo ao pedido de diferentes entidades médicas, com o objetivo de melhorar a qualidade na formação dos médicos. A medida vale para instituições públicas federais, estaduais e municipais e privadas. A ampliação de vagas em cursos de medicina já existentes em instituições federais também fica suspensa pelo mesmo período.

“Teremos moratória de cinco anos para que possamos reavaliar todo o quadro de formação médica no Brasil. Isso se faz necessário até porque as metas traçadas com relação à ampliação de médicos no Brasil já foram atingidas. Mais que dobramos o número total de faculdades de formação de medicina nos últimos anos, o que significa dizer que há uma presença de formação médica em todas as regiões do Brasil”, afirmou o ministro da Educação.

Outra portaria assinada na ocasião é sobre a criação de um grupo de trabalho para subsidiar a reorganização da formação médica, com foco na melhoria da qualidade profissional dos médicos. Também uma solicitação da AMB.

Já a Abmes – Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior considera que a medida representa “um retrocesso que compromete o desenvolvimento do país e o atendimento à população naquilo que é um direito humano fundamental, o direito à saúde”. Para a Abmes, é contraditório que o governo, poucos meses após criar uma regra específica para o aumento de vagas, proíba a criação dessas mesmas vagas, inclusive em cursos com reconhecida qualidade, referindo-se ao Programa Mais Médicos.

Segundo Lincoln, da AMB, “o decreto vai nos permitir colocar um freio de arrumação, estancar a partir de um certo ponto os problemas repetitivos que temos hoje, que irão impactar em qualquer gestão, sob a forma de sequelas, judicialização, com processos no CRM, cíveis e criminais”. Para a entidade, a medida é uma das mais importantes conquistas da população brasileira e para a saúde do país. “Ao estabelecer bases para a reorganização da formação médica, e tendo como foco a melhoria da qualidade profissional, estará sendo preservada a qualidade assistencial da medicina à população”, complementa.

Com a mudança, o Brasil vai ganhar tempo para que se defina o que fazer do ensino médico no Brasil, criando a oportunidade para a implantação de critérios eficientes e eficazes a fim de que se mantenham instituições com competência educacional.

Para o presidente da entidade, a moratória não resolve tudo, mas ajuda muito. “A população precisa ter certeza de que, se um médico está formado e com um diploma, ele tem totais condições de atendê-la, independentemente de onde tenha estudado.”

Segundo a associação, não há mais necessidade de qualquer curso de medicina novo no Brasil. O país precisa é de médicos com formação de qualidade. “Não há solução mágica para os problemas da saúde no Brasil. Financiar com recursos do Estado brasileiro uma indústria de impressão e de distribuição de diplomas de médicos não muda a realidade precária da saúde brasileira. Da mesma forma como a vinda dos profissionais cubanos não melhorou substancialmente nenhum índice importante de mensuração”, acrescenta o presidente da AMB.

Apesar de o decreto ser extremamente importante, alguns pontos ainda precisam ser conversados com a classe médica. Como, por exemplo, a localização das escolas e as estruturas oferecidas aos alunos. Deve-se entender melhor onde estão e como funcionam as atuais escolas. Por isso, só a assinatura do decreto não será suficiente para garantir a preparação de bons médicos. Para a entidade, é preciso cancelar os editais lançados durante o governo anterior e que ainda estão em andamento, pois foram concebidos com os mesmos vícios que causaram os problemas vistos em diversas escolas inauguradas recentemente.

Excesso de escolas de medicina

No Brasil, existem atualmente mais de 300 escolas de medicina. Entre 2000 e 2015, foram criadas 142 escolas médicas. Mais de cem foram liberadas para atuar a partir de 2013. São, ao todo, 78 escolas federais, 35 estaduais, 16 municipais, duas públicas e 172 particulares. Como comparação, na China existem 150 faculdades para 1,3 bilhão de pessoas, e, nos Estados Unidos, onde estão as escolas mais respeitadas do mundo, são 131 cursos para 300 milhões de habitantes.

Só para se ter uma ideia, em 15 anos foram criados três vezes mais cursos de medicina que nos últimos 200 anos de história do país. Isso desde que D. João VI assinou, em 1808, o documento que permitiu criar a primeira faculdade de medicina do Brasil, a Escola de Cirurgia da Bahia (atualmente a Fameb da UFBA).

Com a expansão das escolas de medicina, em poucos anos serão formados cerca de 30.000 médicos por ano, o que dará uma relação de 14 médicos por 100.000 habitantes, quase o dobro da relação nos Estados Unidos.

O que se vê nas faculdades de medicina são todos os tipos de problemas, dos mais sérios e variados: não existem professores com formação acadêmica em quantidade suficiente nas escolas, que muitas vezes funcionam em cidades onde nem há médicos para atender a população; os laboratórios de boa parte das faculdades são inadequados para o ensino das disciplinas básicas; não há instalações adequadas e a maior parte das faculdades autorizadas pelo MEC não conta com hospitais-escolas, fundamentais na formação prática e no internato dos alunos.

O internato é diferente da residência, que o profissional faz depois de formado. Os últimos dois anos do curso de medicina são dedicados ao estágio, chamado de internato, em que o aluno vai aprender na prática. O MEC exige que, para cada vaga do curso de medicina, deve haver um mínimo de cinco leitos do SUS, ou conveniados, para o internato. Mas a maioria das escolas nem convênio com hospitais tem. As salas de aula têm laboratórios e bonecos de plástico, mas faltam professores e espaço para a formação prática em enfermarias.

O presidente da AMB explica que aumentar o número de médicos no Brasil, pura e simplesmente, não resolve o problema da saúde atual e cria outros, como a sobrecarga do sistema devido à atuação de médicos despreparados e inseguros, que pedem exames desnecessários, além de internarem e medicarem de forma equivocada.

Nível de emprego na saúde é insuficiente

No acumulado de janeiro a dezembro de 2017, foram criados 44.505 postos de trabalho nas atividades do setor de hospitais, clínicas, laboratórios e demais estabelecimentos de serviços privados de saúde no país, totalizando  2.144.481 trabalhadores.

Entre as atividades, destaca-se a criação de 18.612 vagas no “Atendimento Hospitalar” e também a geração de 7.494 vagas na atividade “Médica ambulatorial”. Por outro lado, a atividade de “Serviço móvel de urgência” gerou um saldo de 1.007 demissões.

O Estado de São Paulo representa 33% do emprego no setor de todo o Brasil e emprega 712.052 trabalhadores, tendo gerado 15.152 vagas no ano passado, com destaque para a criação de 7.357 postos na atividade de “Atendimento Hospitalar”.

Já o número de estabelecimentos de saúde no país teve um crescimento de 4,8% em dezembro de 2017 em comparação a dezembro de 2016. Destaca-se no período em questão o crescimento de 34% no número de unidades de atenção em home care.

No estado de São Paulo, o número de estabelecimentos de saúde cresceu 5,1% no ano de 2017 em relação a 2016 com destaque para as unidades de atenção em home care com aumento de 19,2% das clínicas e laboratórios especializados, que tiveram incremento de 10,2%.

Apesar do crescimento do nível de emprego e de serviços de saúde no Brasil, o presidente da Fehoesp – Federação dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo, Yussif Ali Mere Jr, destaca que esses números ainda são muito tímidos. “Não podemos falar em crescimento do setor. Há três anos, o segmento saúde criava 45.000 empregos em apenas 30 dias, portanto, esses números apontam para uma lenta e pequena recuperação da crise econômica, que também afetou o segmento saúde. Este ano esperamos uma recuperação mais expressiva”, avalia o médico.

Segundo Mere Jr, o único setor que teve crescimento expressivo foi o de serviços de home care, que está diretamente ligado ao processo de envelhecimento da população brasileira. “Isso reflete a necessidade de uma assistência menos onerosa e com maior resolutividade. A desospitalização, nesses casos, é uma realidade”, avalia.

Esses dados integram o Boletim Econômico da Fehoesp, que oferece importantes dados do setor a partir de estatísticas do SUS, Ministério do Trabalho, IBGE, ANS e outras fontes de dados econômicos oficiais.

Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 90, de março/abril de 2018. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-90-revista-hospitais-brasil

Redação

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