A trágica estatística de casos e mortes em consequência da Covid-19, ainda sendo atualizada diariamente quase três anos após a identificação do vírus Sars-CoV-2, no fim de 2019, poderia ser pior não fosse a urgência com que muitos governos e empresas enfrentaram a crise sanitária pelo mundo. Embora em muitos setores a pandemia tenha limitado a criação de produtos inovadores, na área da saúde deu-se o contrário. Foram criados em tempo recorde testes para diagnóstico, desenvolvidos medicamentos e vacinas contra a Covid-19, fabricados equipamentos inovadores para o atendimento emergencial e em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), produzidos máscaras e revestimentos para proteger a população e reduzir a disseminação do vírus, entre outras iniciativas.
Algumas das tecnologias promissoras projetadas para combater a pandemia não passaram de protótipos. Outras foram aplicadas emergencialmente sem conseguir decolar comercialmente. Mas um grupo delas se consolidou como produto de mercado. Desde o início de 2020, Pesquisa FAPESP divulgou cerca de 50 dessas inovações elaboradas no Brasil.
Uma das mais bem-sucedidas durante esse período foi o Sistema Solis, espécie de pulmão artificial criado pela equipe de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) da Braile Biomédica, empresa de São José do Rio Preto, no interior paulista. O aparelho ajuda pacientes com Covid-19 e portadores de outras doenças com comprometimento pulmonar em estado crítico a terem uma chance de sobrevivência quando equipamentos de ventilação mecânica já não dão conta de mantê-los respirando.
O sistema é empregado na chamada terapia ECMO – sigla para oxigenação por membrana extracorpórea -, indicada para quadros de insuficiência respiratória aguda. Mas também pode servir, temporariamente, como coração artificial para quem sofreu infarto do miocárdio, transplante de coração ou parada cardíaca.
“O aparelho drena o sangue para fora do paciente através de cânulas e tubos, faz sua oxigenação com auxílio de uma membrana polimérica e o devolve para o doente. É um tratamento invasivo de suporte à vida que pode ajudar a manter o paciente até que seu pulmão se recupere”, explicou, à época, o engenheiro mecânico Rafael Braile, diretor de Operações e PD&I da empresa (ver Pesquisa FAPESP nº 301).
“Nosso maior desafio agora é expandir a indicação de uso do Solis para além da Covid-19”, comenta Braile. Isso começou a ser feito recentemente. O pulmão artificial da companhia paulista, primeiro dispositivo para ECMO criado no hemisfério Sul, segundo o engenheiro, foi exportado e passou a ser usado para minorar os efeitos de uma relevante crise com impactos globais: a invasão da Ucrânia pela Rússia. “Vendemos mais de 20 sistemas para o governo ucraniano. Eles foram instalados em hospitais públicos para tratar pacientes com intoxicação por fumaça”, conta.
A Braile também trabalha em uma nova versão do sistema para uso pediátrico. Em paralelo, busca regulamentar o produto na União Europeia e nos Estados Unidos a fim de ampliar o mercado do equipamento.
Revestimentos antivirais
Em julho de 2019, a startup de nanotecnologia Nanox, sediada em São Carlos (SP), participou de um programa de aceleração de negócios no Vale do Silício. O convite veio da Plug and Play, aceleradora que no passado já havia investido dinheiro em empresas que se tornariam globais, como Google, Rappi e Dropbox.
A aceleradora americana soube que a Nanox havia desenvolvido um material antimicrobiano, à base de micropartículas de prata, que, aplicado a embalagens de leite, dobrava a vida útil do produto na prateleira. A inovação foi fruto de um projeto apoiado pelo Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP.
A mesma tecnologia, quase um ano depois, seria aplicada pela Nanox no enfrentamento à pandemia causada pelo novo Coronavírus. Em junho de 2020, a empresa lançou um tecido com micropartículas de prata na superfície que inativa o Sars-CoV-2, eliminando 99,9% da carga viral em dois minutos de contato (ver Pesquisa FAPESP no 293). O desenvolvimento do material teve a colaboração de pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), da Universitat Jaume I, da Espanha, e do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.
Atualmente, as micropartículas de prata da empresa, princípio ativo antimicrobiano que elimina vírus, bactérias e fungos, são aplicadas em diversos produtos, entre eles máscaras de proteção individual, uniformes profissionais, chapas de madeira MDF usadas na fabricação de móveis e filmes plásticos para proteção de superfícies frequentemente manuseadas, como maçanetas, corrimãos, botões de elevador e telas sensíveis ao toque.
“Os setores mais relevantes para a Nanox são os de arquitetura e construção civil, com aplicação da tecnologia em tintas e mobiliário, de embalagens de alimentos e têxtil”, explica Gustavo Simões, CEO da Nanox. A pandemia, diz o empreendedor, funcionou como uma mola propulsora para os negócios da Nanox.
“Nosso principal cliente sempre foi o setor industrial, mas a indústria brasileira não é conhecida por investir em inovação. Apresentar nossas soluções e negociar sempre foi um processo demorado.” De repente, diz ele, na pandemia tudo se acelerou e os clientes começaram a se questionar sobre o que poderiam agregar aos seus negócios. “A incerteza sobre como algumas empresas iriam sobreviver à pandemia gerou uma busca por inovação. E o nosso produto, de certa forma, atendia a essa necessidade”, conta.
Novas oportunidades também surgiram no exterior. A empresa exporta atualmente suas micropartículas de prata para clientes nos Estados Unidos e em países da América Latina e Europa.
Biossegurança
A emergência sanitária causada pelo Sars-CoV-2 também funcionou como um vetor para os negócios da startup paulistana Biolambda. Criada em 2017, ela dedicou-se nos primeiros dois anos a desenvolver e fabricar artefatos ópticos e fotônicos para pesquisa científica. Pouco antes da eclosão da pandemia, a empresa, que já havia contado com apoio do Programa Pipe da FAPESP, decidiu entrar no mercado de controle microbiológico em ambiente industrial utilizando luz ultravioleta do tipo C (UVC). Essa radiação destrói o ácido nucleico de vírus e bactérias, deixando-os incapazes de se replicarem e infectarem o organismo.
“Com a pandemia, decidimos criar soluções que usam a mesma base tecnológica da radiação UVC para combater o Coronavírus”, recorda-se Caetano Sabino, fundador e CEO da startup. “Em menos de três meses colocamos no mercado uma nova linha de aparelhos para desinfecção de máscaras, superfícies, ar e ambientes, com elevada eficácia.” Outra inovação surgida em 2020 foi um robô, controlado remotamente, para desinfetar quartos de hospitais, consultórios médicos e outros ambientes.
Segundo o empreendedor, centenas de equipamentos da linha de biossegurança, batizados de UV Mask, UV Air, UV Room e UV Surface, já foram comercializados. Cerca de 20 robôs também estão sendo negociados com hospitais e clínicas do Rio de Janeiro e de São Paulo. “Acreditamos que esse produto pode ampliar a biossegurança em geral de unidades de saúde. Além de atuar contra o Coronavírus, é eficaz contra outros vírus, bactérias e fungos. E pode combater infecções hospitalares causadas por diferentes microrganismos”, diz Sabino.
A linha de biossegurança responde hoje por cerca de 60% da receita da Biolambda, que faturou R$ 2,5 milhões no último ano. “A pandemia acelerou muito o desenvolvimento de nossas inovações e teve um impacto positivo no caixa da empresa”, conta Sabino, que comemorou em agosto o fechamento do primeiro contrato de exportação para o Reino Unido. Antes, os produtos de desinfecção com raios UVC da empresa já haviam sido vendidos para clientes da América Latina.
Ventiladores vitais
Maior fabricante de ventiladores pulmonares do Brasil, a empresa Magnamed, de Cotia (SP), viu a demanda por seus produtos disparar com a pandemia – esses aparelhos são usados em pacientes com dificuldade para respirar. Para dar conta do aumento da produção, o CEO da empresa, o engenheiro eletrônico Wataru Ueda, acionou sua rede de contatos do Instituto Tecnológica de Aeronáutica (ITA), onde se graduou, para obter investimentos de forma a aumentar a produção. Como consequência, líderes de grandes empresas nacionais, como a fabricante de papel e celulose Suzano e a companhia aeronáutica Embraer, que faziam parte da rede de contatos de Ueda, juntaram-se ao esforço para ampliar a fabricação do equipamento e atender o sistema de saúde.
Com o reforço, a empresa pôde aumentar sua produção e fechou no primeiro ano da pandemia um contrato para fornecimento de 6.500 ventiladores para o Ministério da Saúde. A venda levou a um faturamento recorde de R$ 340 milhões naquele ano, 7,5 vezes maior do que o de 2019. Com o mercado interno bem suprido em relação à quantidade de respiradores nos hospitais, a empresa esboçou planos de internacionalização.
A Magnamed quer chegar a 2026 com 80% do faturamento vindo de exportações – hoje, as vendas externas respondem por cerca de um terço do total. A internacionalização prevê a construção de unidades para fabricação e montagem dos aparelhos no exterior. A primeira delas, em Miami, nos Estados Unidos, está sendo preparada para produzir o ventilador eletrônico OxyMag, carro-chefe do grupo. A empresa só aguarda o aval da Food and Drug Administration (FDA), órgão regulador norte-americano para a área da saúde e alimentos, para iniciar a produção do aparelho.
Durante os primeiros meses da pandemia, universidades e empresas de vários lugares do país se dedicaram a criar projetos de aparelhos de respiração assistida, capazes de facilitar a ventilação pulmonar. Com a aparência de um capacete ou um escafandro usado por mergulhadores, esses equipamentos ajudam a minimizar os efeitos inflamatórios secundários à infecção viral. Seu uso pode prevenir intubações em pacientes internados, último recurso médico em casos agudos da Covid-19.
Um desses projetos foi a Bolha de Respiração Individual Controlada (Bric), criada pela empresa de tecnologia Roboris e lançada comercialmente pela LifeTech Engenharia Hospitalar, ambas na capital paulista. De lá para cá, o equipamento foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e está em uso em 100 hospitais de 15 estados, tendo atendido mais de 4 mil pacientes desde o início de 2020.
“Naquele momento crucial da pandemia, quando faltavam vagas em UTIs e o Brasil lutava para atender pacientes de Covid-19 em estado grave, a Bric foi uma importante aliada, já que diminuía a necessidade de ventilação mecânica invasiva [intubação]”, lembra o engenheiro Guilherme Thiago de Souza, diretor-geral da LifeTech.
A semente da criação do aparelho de ventilação assistida da empresa foi plantada dentro do Cluster Aeroespacial Brasileiro, um grupo de empresas do setor aeroespacial, que tem como entidade gestora o Parque Tecnológico de São José dos Campos, no interior paulista. Foi lá que, no primeiro semestre de 2020, uma equipe de engenheiros teve a ideia de aliar a teoria da ventilação não invasiva com o conceito de helmet (ou capacete), surgido na década de 1980 no exterior, mas ainda indisponível no Brasil.
Com dificuldade para encontrar componentes para desenvolver o capacete, Souza recorreu a processos criativos e construtivos de engenharia. Como resultado, conseguiu viabilizar a industrialização e comercialização da Bric. O primeiro protótipo ficou pronto em 40 dias. A partir daí, o aparelho passou a ser usado em UTIs, locais onde a taxa de mortalidade de pacientes intubados com Covid-19 girava em torno de 80%.
“Em razão do sucesso do nosso capacete de ventilação, fui convidado a fazer um doutorado no Departamento de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo [FM-USP]”, comenta Souza. Lá ele trabalha em um novo projeto envolvendo vias aéreas.