Pandemia provoca queda de 86% no atendimento a transgênero pelo SUS

Cirurgias do processo transexualizador despencaram na pandemia

Olhar no espelho e não reconhecer-se é um drama vivido por boa parte das 4 milhões de pessoas transgênero ou não binárias do Brasil. O número é uma das poucas estatísticas sobre essa população, que não tem sido estudada nem mesmo pelo IBGE. Questões sobre gênero e sexualidade foram recusadas pelos organizadores do Censo Demográfico.

O designer Samir Martinez, de 31 anos, sempre se sentiu desconfortável com a própria imagem. Sofria com baixa autoestima e com transtornos alimentares porque desejava uma aparência menos feminina. Ele iniciou o processo de adequação com a ajuda da ONG Em Boas Mãos, para realizar o sonho de retirar os seios. Procurou a entidade depois de enfrentar dificuldade em conseguir os procedimentos pelo plano de saúde. “A mastectomia masculinizadora no Brasil é muito cara e há muita burocracia para os convênios autorizarem. Ainda estou no pré-cirúrgico, mas só de pensar em não usar mais binder (faixa para disfarçar os seios) já será um grande alívio no dia a dia, toda a liberdade que vai me proporcionar, a autoestima e a autoaceitação será outra, poderei me ver em um corpo que realmente me pertence”, conta.

A pandemia aumentou a espera, que já era enorme, por esse tipo de procedimento. Segundo a Defensoria Pública de São Paulo, em 2021 havia 558 homens e 648 mulheres na fila do SUS. Em 2020 houve queda de 86% no número de procedimentos. Dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2019, foram 224 cirurgias. No ano seguinte, só 31.

A advogada especialista em Direito Médico e fundadora da ONG Em Boas Mãos, Beatriz Guedes, aponta falta de políticas públicas. “Essa população não é acolhida adequadamente pelo sistema de saúde, seja ele público ou privado, e enfrenta inúmeros problemas quando necessita desde o atendimento básico de rotina até cirurgias e procedimentos mais complexos”, diz.

Poucas unidades de atendimento

O país só tem cinco centros de referência com atendimento ambulatorial e hospitalar habilitados para cirurgias de transgenitalização e outros 29 ambulatórios especializados distribuídos entre as principais cidades de cada estado. Cirurgias estéticas de adequação corporal, no entanto, são consideradas eletivas pelo SUS, ou seja, não-urgentes. Por esse motivo, a espera por uma cirurgia de redesignação sexual pode levar anos.

Além da demora, falta preparo às instituições de saúde e profissionais. O atendimento, muitas vezes, é marcado por preconceito e discriminação. “Todos esses obstáculos acabam motivando a busca por tratamentos caseiros e clandestinos, sem nenhuma segurança e que colocam a saúde e a própria vida do paciente em risco”, pontua a advogada.

A ONG Em Boas Mãos, de Beatriz, iniciou seu trabalho auxiliando pessoas vítimas de discriminação estética, por causa de cicatrizes aparentes ou outras características físicas que traziam sofrimento. A alta procura de pessoas trans fez com que, hoje, 10% dos atendimentos sejam para esse público. A entidade tem psicólogos e psiquiatras que atendem voluntariamente, além de cirurgiões que fazem cirurgias plásticas. “As pessoas trans que nos procuram se sentem desconfortáveis, porque já enfrentaram muitas dificuldades e discriminação tentando auxílio médico em outros locais. Aqui acolhemos a todos com respeito e queremos ajudar mais pessoas”, afirma.

O foco da ONG é combater a discriminação que essas pessoas sofrem no dia a dia, pela aparência, por isso ainda não faz cirurgias de redesignação sexual, e sim procedimentos como feminilização ou masculinização facial, mastectomia ou implantes de próteses. O objetivo é proporcionar bem-estar e o resgaste da autoestima. “Esses tratamentos têm um poder transformador na vida dessas pessoas e, por meio da ONG, buscamos recuperar a dignidade para que elas se sintam confortáveis conforme a sua identidade de gênero”, completa Beatriz.

Não é só estética, é saúde mental

Samir também explica que, apesar de estéticas, essas cirurgias não são supérfluas. “Essas pessoas não desejam mudar a aparência em busca de beleza, mas sim de reafirmação da própria identidade. Para mulheres e homens trans, isso é fundamental para melhorar a autoestima, autoconfiança e autoafirmação. Isso é uma questão de saúde mental, necessidade básica mesmo”, ressalta.

Atendimentos gratuitos ou com custos reduzidos

O acolhimento das pessoas que chegam à ONG é feito por uma assistente social que analisa os documentos e agenda uma avaliação médica. “É feita uma triagem, buscamos entender a necessidade daquela pessoa e analisamos cada caso individualmente”, explica Beatriz. A ONG vive de doações. Os recursos são utilizados para pagar custos hospitalares, como internações e medicamentos, mas em alguns procedimentos mais complexos pode ser necessário que o paciente arque com parte dos custos, em média, 30% do valor que custaria em uma clínica particular. “Buscamos aumentar as contribuições para ampliar nossa capacidade de atender cada vez mais pessoas totalmente de graça”, explica Beatriz.

Redação

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