SBH divulga carta aberta questionando sistema de tratamento da hanseníase que pode ser implantado no Brasil

Leia a carta aberta:

Em reunião em Brasília (DF), o Comitê Técnico Assessor (CTA) de Hanseníase, da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde do Brasil, discute a “implantação do novo protocolo de tratamento da hanseníase com Multidrogaterapia Única (MDT-U)”. Em dezembro de 2017, o CTA se reuniu para discutir o MDT-U, esquema único de seis doses MB para todos os pacientes, e não houve consenso durante a reunião sobre a sua implementação.

Em novembro de 2015, a Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) se posicionou oficialmente ao Dr. Erwin Cooreman, coordenador do Programa Global de Hanseníase da Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre o seu entendimento em relação ao esquema MDT-U, após discussão com os seus membros e com a diretoria à época. Naquele momento, a SBH deixou claro que eram pouquíssimos os estudos existentes sobre o MDT-U e solicitou ao coordenador mundial atenção e resistência quanto à possibilidade de implantação de um esquema curto e com tão poucos estudos. Até o momento, não encontramos nenhum documento da OMS que referende a implantação do MDT-U em qualquer país ou região do planeta.

Na realidade, pouca coisa mudou de novembro de 2015 até agora.

Até aquele momento, os dois únicos trabalhos que davam suporte ao uso deste esquema curto haviam sido publicados na revista Leprosy Review, em 2012 e 2014, com pacientes de dois centros de referência no Brasil, selecionados para um estudo aberto e randomizado com MDT-U (seis doses MB para todos) versus MDT. Além de um número de reações maior no esquema MDT-U, chamamos a atenção naquele momento ao fato de apenas 35% dos pacientes selecionados apresentarem um resultado de baciloscopia maior ou igual a três.

No entanto, uma das maiores dificuldades dos dois trabalhos, ambos relacionados ao mesmo estudo, se encontrava no tempo de follow-up; ou seja, o acompanhamento dos pacientes selecionados, de apenas três anos ou menos para a maioria deles. Pedimos especial cuidado ao fato de autores de reconhecida competência científica, como Ji Bahong e Jacques Grosset, terem chamado a atenção para um mínimo de cinco a sete anos de acompanhamento para a avaliação de qualquer esquema de hanseníase que usasse a rifampicina, além de vários outros autores, inclusive brasileiros, já terem referido que as recidivas em hanseníase começam a surgir após seis anos da terapêutica atual, com média de 10 anos. Portanto, para estudos de terapêutica com o atual esquema, o mínimo de 10 anos de follow-up deve ser obedecido, sob pena de os resultados não espelharem o real tamanho do problema, com consequências graves para os pacientes e para a cadeia de transmissão do bacilo na comunidade.

De 2015 até este momento, apenas mais um trabalho, do mesmo grupo e com o mesmo grupo de pacientes, foi publicado na revista PLOs Neglected Diseases, em 2017, com um follow-up de 5 anos, portanto, pelos motivos citados acima, um acompanhamento de curta duração, e ainda com algumas outras dificuldades, que citamos a seguir:

  1. De um total de 613 pacientes incluídos no estudo, 439 completaram o follow-up. Não há informações mais detalhadas sobre o que aconteceu com os 194 pacientes que não foram acompanhados até o final do estudo. Sabemos do aumento de casos de resistência medicamentosa e do número de recidivas entre pacientes irregulares e faltosos.
  2. No acompanhamento de cinco anos, dentre os 439 pacientes selecionados, foram observadas sete recidivas no esquema MDT-U, contra apenas uma no esquema MDT. É claro que quando se analisa este fato em um universo de 439 pacientes, a diferença entre sete ou um não parece significativa, mas não é este ponto que está em questão. Outras perguntas deveriam ter sido feitas: Qual seria a taxa de recidiva entre os pacientes após 10 ou 15 anos de observação em cada grupo? Pode ser maior ou menor do que esta apresentada? Os autores estimaram em 4,4% em 10 anos, o que referem ser “aceitável”. Os pacientes do estudo estavam sendo acompanhados em dois centros de referência, mas em uma eventual implantação deste esquema curto, os pacientes serão tratados nas estratégias saúde da família que, todos sabemos, estão com sérios problemas para diagnosticar hanseníase. O que aconteceria com estes pacientes na nossa rede de atenção atual? Qual o potencial de transmissão destes pacientes para outras pessoas da comunidade, que acham – o paciente, a família e a comunidade – que o paciente está curado? Ressalte-se que a mediana de acompanhamento do grupo em questão foi menor que cinco anos.
  3. A comparação do tempo de recidiva da hanseníase com a recidiva rápida da tuberculose, de quatro meses após o tratamento, não é razoável. Os tempos de divisão do leprae e do M. tuberculosis são completamente diferentes. Temos que lembrar que o maior estudo de dose única de rifampicina para os contatos de pacientes de hanseníase pareceu eficaz nos primeiros dois anos de estudo, mas se resultou inócuo a partir do terceiro ano, com taxas similares de doença nos dois grupos, indicando que a dose única de rifampicina apenas “atrasou” os diagnósticos dos casos nos grupos estudados.
  4. Chama a atenção a ausência de dados histopatológicos, sorológicos e moleculares no estudo, associados à utilização apenas da classificação clínica operacional da OMS, que usa somente a contagem de lesões para definir os casos como paucibacilares ou multibacilares, apesar da consagrada classificação de Ridley e Jopling ser conhecida e utilizada em pesquisas na hanseníase há mais de 50 anos.
  5. Adicionalmente, os autores referem que a adoção do MDT-U poderia prevenir o tratamento excessivo de indivíduos PB erroneamente classificados como MB. No entanto, estes mesmos pacientes vão receber clofazimina diariamente durante seis meses, com alteração da cor da pele, e com o ressecamento importante causado pelo uso da droga. Além disso, são raras as informações sobre o erro diagnóstico PB/MB e o consequente tratamento excessivo citado no trabalho.
  6. Por fim, os próprios autores relatam que consideram muito difícil estimar a taxa de recidiva da hanseníase, porque as recidivas ocorrem muito tempo após o término do tratamento. Portanto, dizem eles, que considerando a longa evolução da hanseníase, um ponto fraco do estudo pode ser o tempo curto de acompanhamento pós-tratamento, que não permitiu a detecção de recidivas tardias.

Achamos, ainda, ser de importância capital citar que não há nenhum direcionamento da OMS no sentido de implantar ou recomendar o MDT-U (seis doses MB) para uso nas diferentes regiões do planeta.

Desta forma, a SBH mantém a sua posição de que não existem dados suficientes para apoiar a implantação do esquema curto proposto de seis doses MB, nomeado MDT-U, e reitera a necessidade imperiosa de incremento dos treinamentos e capacitações para a rede básica de saúde, com a finalidade de aumentar a detecção da endemia oculta de hanseníase presente hoje em nossas comunidades, sofrendo com a falta de diagnósticos, seja por falta de cobertura da rede de saúde, pela falta de exame de contatos, ou pelas dificuldades enfrentadas pelos profissionais em firmar os diagnósticos. Além disso, a SBH espera que os membros do CTA discutam a proposta com a serenidade necessária e com o entendimento de que são imperativos dados mais robustos para decisões como esta, que impactam significativamente na vida da população acometida pela hanseníase no presente e no futuro.

Claudio Guedes Salgado
Presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia

Redação

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