Engenharia clínica é estratégia, muito além de manutenção

Por Carol Gonçalves

É comum considerar engenharia clínica (EC) apenas como área de manutenção, mas este setor é muito mais amplo e extremamente estratégico, pois influencia tanto no atendimento ao paciente quanto no retorno financeiro da instituição. Seu hospital tem dado devida atenção a isso?

De acordo com a Resolução nº 218, do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, dezoito atividades fazem parte das atribuições do profissional, entre elas consultoria, orientação técnica, padronização, condução de trabalho, ensino, pesquisa, fiscalização de obra e controle de qualidade, sendo que apenas três mencionam a manutenção.

“Sou a favor de uma boa engenharia de manutenção, mas um hospital precisa ir além disso. Ao internalizar o conceito do serviço de engenharia, seja no equipamento médico, seja na infraestrutura, seja em obras incluindo os arquitetos hospitalares, o hospital fica muito mais forte em estratégia tecnológica, que por sua vez acaba fortalecendo a estratégia de sobrevivência, a estratégia administrativa e a estratégia clínica, que tem o objetivo de produzir mais resultado em saúde. Precisamos virar a página: manutenção é importante, mas engenharia é mais que manutenção”, defende Lúcio Flávio de Magalhães Brito, engenheiro clínico e consultor pela Engenharia Clínica Ltda., professor de engenharia biomédica da PUC-SP e consultor internacional da OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde.

Brito, da Engenharia Clínica Ltda.: “É notório que o hospital sem um serviço de engenharia estruturado, em que cada setor trata seus problemas diretamente com os fornecedores, acaba perdendo força no aspecto técnico e comercial”

Infelizmente, esse é o pensamento reinante entre a maioria dos administradores hospitalares, na opinião de Fernando Meira da Rocha, CKO – diretor de conhecimento da EngeHosp – Rede Brasileira de Engenharia Clínica e Hospitalar. “Manutenção é cerca de 10% a 20% das atividades de EC dentro de um estabelecimento de saúde, mas é a que mais aparece. Os próprios profissionais têm feito grandes esforços para mostrar que as outras atividades trazem maior retorno financeiro para o hospital, desde a seleção correta dos equipamentos médico-hospitalares até o acompanhamento eficaz de todo o ciclo de vida destes ativos e seu descarte”, explica.

Wagner Capiche Lacerda, gerente de Engenharia Clínica e SADT – Serviço de Apoio Diagnóstico e Terapêutico do Grupo São Cristóvão Saúde, acredita que essa visão está mudando. “A profissionalização da área e a extensão dos cursos de profissionalização e graduação por todo o território brasileiro trouxeram um crescimento significativo para esta área tão valorosa. Hoje, o mais comum de ouvir é que não podemos tomar determinada decisão sem a participação do departamento de engenharia clínica”, diz.

Como estruturar a área de EC?

O primeiro passo é fazer um bom diagnóstico da situação do hospital, localizar riscos, entender os mecanismos de ação e fazer o relatório de proposta de melhoria, incluindo os custos envolvidos. Brito faz essa recomendação não apenas para a equipe da engenharia clínica, mas também para a área de engenharia hospitalar, que envolve estrutura, elevadores, gases, energia elétrica e qualidade da água.

Depois do diagnóstico, é importante fazer o inventário do parque tecnológico, elencando todos os equipamentos, identificando fabricantes, modelos e números de série, incluindo também os de infraestrutura: gerador, manifold para cilindros, tanque criogênico, compressor e central de vácuo, entre outros.

Rocha, da EngeHosp: “Outras atividades trazem maior retorno financeiro para o hospital, desde a seleção correta dos equipamentos médico-hospitalares até o acompanhamento eficaz de todo o ciclo de vida destes ativos e seu descarte”

Após conclusão do inventário, é preciso seguir alguns critérios para incluir ou não os equipamentos nos programas que serão implementados pela engenharia, como de treinamento, conformidade em normas, segurança, manutenção preventiva e corretiva, dependendo do hospital e da sua estratégia tecnológica.

Sabendo disso, é possível dimensionar a equipe de atuação através de algumas ferramentas. “Por exemplo, ao incluir uma autoclave no programa de manutenção preventiva, sabe-se que essa manutenção será realizada a cada três meses, deixando o equipamento parado de três a quatro horas em cada vez. Assim, o hospital tem indicadores para dimensionar a equipe, não só com relação à habilitação de cada um, mas também referente à quantidade de profissionais”, explica.

É importante, segundo Brito, treinar e manter o treinamento constante para ter uma equipe forte e sempre alinhada com os conhecimentos mais recentes que afetam o desempenho desse tipo de serviço.

Outros aspectos também são fundamentais para uma área bem estruturada: investir em instrumentos de medição e analisadores de desempenho de equipamentos; e reter profissionais, o que se consegue com bons salários. “O mercado é carente de profissionais e é comum que eles fiquem saltando de um hospital para outro procurando as melhores condições de trabalho. Em grandes redes de hospitais, os engenheiros chefes, gerentes ou diretores têm grande tempo de casa porque recebem suporte”, acrescenta Brito.

De acordo com Rocha, o gestor de engenharia clínica deve monitorar constantemente seus indicadores de desempenho através de bons sistemas computadorizados. “Já se foi o tempo que trabalhávamos por intuição ou através de simples planilhas, hoje é imprescindível um sistema que entregue a informação necessária no menor tempo possível”, expõe.

Lacerda, do Grupo São Cristóvão: “Sempre comento com o meu time que devemos ter a segurança em nossos equipamentos de tal forma que, se necessário, a equipe médica possa nos atender com estes aparelhos”

Já o principal ativo da área – o capital humano – é dimensionado a partir do tamanho do parque tecnológico instalado, e, de preferência, com uma estrutura o mais enxuta possível. “Se existe mão-de-obra no território onde o estabelecimento de saúde está instalado, essas estruturas tendem a ser menores, pois é mais fácil contratar por tarefa do que manter o profissional. A pergunta que sempre aflora neste momento é: fazer internamente ou contratar uma empresa para fazê-lo, e a resposta está sempre nos custos”, conta Rocha.

Lacerda salienta que o departamento de engenharia clínica é bem complexo e pensar em um mundo ideal pode encarecer muito o projeto de implantação. “No Grupo São Cristóvão, estruturamos a EC olhando para a idade do parque tecnológico e suas especialidades técnicas. Quanto mais complexos são os equipamentos, mais qualificada deve ser a mão de obra técnica. Além de considerar as especificidades técnicas das tecnologias, precisamos prever as estruturas da instituição que receberão este suporte com vistas a manter o parque em condição apta de uso”, diz.

Basear-se na legislação vigente permite maior assertividade neste planejamento de estruturação, assim como prever um espaço físico interno, administrativo e técnico para atender as demandas e logísticas com os equipamentos médicos, considerando todo o ciclo de vida da tecnologia, a partir do recebimento, higienização, análise em bancada, espaço para armazenamento enquanto aguarda o fabricante analisar e reparar a tecnologia caracterizada como serviço externo, ou mesmo o espaço para recebimento de peça adquirida para um determinado reparo interno, além de atender todo o escopo de serviço programado.

“Este conjunto de características permite ter maior assertividade na estrutura do espaço de engenharia clínica e receber os profissionais, como engenheiros, tecnólogos e técnicos de engenharia clínica, dimensionando este time de acordo com as rotinas estabelecidas e volume de atendimento previsto para o parque tecnológico”, expõe Lacerda.

Resultados

A definição por um modelo de implantação da engenharia clínica dependerá muito da estratégia da instituição e do seu porte, além de quanto tempo e recurso serão demandados para gerenciar esta estrutura

Uma engenharia clínica bem estruturada tem como resultado maior a segurança: do paciente, do próprio patrimônio e do colaborador. Isso quando trabalha em conjunto com o serviço especializado em engenharia de segurança e medicina do trabalho, CCIH – Comissão de Controle de Infecção Hospitalar ou com o Núcleo de Segurança do Paciente.

De acordo com a definição do Colégio Americano de Engenharia Clínica, o engenheiro clínico é o profissional que aplica conhecimentos teóricos e práticos de engenharia somados a habilidades gerenciais para melhorar e desenvolver o cuidado dispensado ao paciente.

Brito ressalta que a engenharia bem estruturada também proporciona independência dos fornecedores e fabricantes em relação ao próprio treinamento quando há ação corretiva e preventiva. Isso gera respostas mais rápidas às necessidades dos hospitais, não somente pela prontidão no conserto, mas também por garantir que o equipamento esteja seguro e possa operar tranquilamente.

“Geralmente, os melhores hospitais acabam tendo um serviço muito mais estruturado, com profissionais de carreira que atuam no local há muitos anos. É notório que o hospital sem um serviço de engenharia estruturado, em que cada setor trata seus problemas diretamente com os fornecedores, acaba perdendo força não só no aspecto técnico, como também no comercial”, conta Brito.

Para Lacerda, além da segurança, o foco deve estar no índice zero de eventos adversos com equipamentos médicos. “Claro que para alcançar esse resultado trabalhamos fortemente nos serviços preventivos, seguindo sempre a recomendação do fabricante e as legislações vigentes. Ter um parque que não ofereça risco assistencial ao paciente é muito gratificante. Sempre comento com o meu time: devemos ter a segurança em nossos equipamentos de tal forma que, se necessário, a equipe médica possa nos atender com estes aparelhos. Atrelado a esta confiabilidade, atender os indicadores estratégicos da instituição é de extrema importância”, opina o profissional do Grupo São Cristóvão Saúde.

Resumindo, Rocha diz que uma engenharia clínica bem estruturada deve garantir a mais alta disponibilidade de equipamentos médicos para o estabelecimento, mas deve deixar bem solidificado para os administradores (geralmente na forma de relatórios consistentes e fundamentados) o custo de não fazer, ou seja, qual o prejuízo que o estabelecimento teria se não houvesse essa gestão.

Na prática

Quando um hospital implanta EC e permanece com ela, é um bom sinal de que está dando resultado. Em geral, de acordo com Brito, essa área atua para cortar contratos de manutenção desnecessários e negociar melhores aspectos técnicos daqueles contratos que são necessários. Outro benefício citado por ele é no processo de compras. Por exemplo, com relação a oxigênio, é possível baixar o consumo em 30% ou 40% com medidas bastante simples.

“A situação mais real possível é a manutenção do serviço de engenharia no organograma do hospital. Você implanta e ele permanece. Muda empresa, muda engenheiro, técnico, enfim, mas o conceito continua”, conta Brito.

Rocha cita o caso da Associação Hospitalar Lenoir Vargas Ferreira, que administra três hospitais no Oeste Catarinense. Inicialmente, a instituição despachava todos os equipamentos para manutenção e reparo em terceiros, o que aumentava a indisponibilidade destes ativos e a deixava “escrava” de sobrepreços dessa “economia extrativista”, que via no estabelecimento uma fonte de sua sustentação financeira. “Com a implantação da engenharia clínica híbrida, os próprios técnicos locais se sentiram prestigiados pela segurança em suas intervenções. Além disso, o conglomerado deixou de desperdiçar R$ 688.000,00 anuais (dados tabulados em 2016) com os serviços terceirizados”, destaca.

Já no Hospital e Maternidade São Cristóvão, Lacerda diz que sempre é olhado para o lucro cessante das tecnologias e realizada uma readequação ou movimentação da tecnologia entre setores, de tal forma que se possa otimizar a tecnologia disponível e gerar um atendimento assistencial mais adequado. O que “não serve” para uma unidade de negócio pode “servir” para outra. Essa ação é mandatória para assegurar a otimização dos recursos e permitir a realocação financeira para outros investimentos.

Outra ação significativa foi adequar o processo de incorporação tecnológica por meio de uma tríplice parceria, ou seja, envolver o setor técnico, o setor assistencial e o setor de compras trouxe um ganho significativo para a instituição.

“Atrelado ao estudo de viabilidade técnica, deixamos de gastar milhões em aquisições para atender determinada demanda, sendo cada vez mais assertivos nas incorporações e adequações de nossas estruturas”, conta. Ele acrescenta que ações como verticalização dos serviços de calibração e segurança elétrica trouxeram redução significativa com custos externos, cerca de R$ 200.000,00 por ano neste tipo de serviço.

Modelos de implantação

A EC nos hospitais pode ser própria, terceirizada ou híbrida. Brito explica que grandes hospitais operam com uma estrutura híbrida porque alguns equipamentos têm grande complexidade tecnológica, sendo mais econômico fazer parceria com o fabricante, principalmente para manutenção preventiva e corretiva, por exemplo, no caso de ressonância magnética e tomografia computadorizada. “A equipe própria com um certo grau de terceirização seria a melhor solução, pois engenharia é área estratégica. Os hospitais que não se estruturaram ainda usam a terceirização, mas acredito que há uma tendência de a instituição ter sua própria equipe e ela decidir o que terceirizar, levando para uma configuração híbrida”, conta.

Também para Rocha, o modelo híbrido é considerado mais rentável tanto hoje quanto para o futuro. “O estabelecimento contrata técnicos de nível médio e os coloca em sua folha de pagamento mensal para tocar o dia a dia e atrela a gestão da engenharia com uma empresa ou profissional independente. Isso traz vantagens para os dois lados, pois mantém a tutela do conhecimento de seu parque sob o seu controle e absorve ensinamentos de grandes profissionais do setor, que podem ratear seus custos em mais de um estabelecimento, tornando o ecossistema sustentável economicamente”, explica.

Segundo Lacerda, a definição por um modelo de implantação da engenharia clínica dependerá muito da estratégia da instituição e do seu porte, além de quanto tempo e recurso serão demandados para gerenciar esta estrutura. “Tenho visto grandes grupos de saúde com engenharia clínica terceirizada e com gestores verticalizados para reportar à diretoria. Também vejo grupos médios com engenharia clínica 100% verticalizada e instituições pequenas com técnicos terceiros de uma empresa para atender a demanda e cumprir as legislações vigentes. Não é uma regra, tem de tudo um pouco”, comenta.

Hoje a diferença entre os modelos não é mais técnica ou de habilidades diferentes, as formações dos profissionais estão cada vez mais equivalentes e de forma igualitária quando falamos de qualidade de entrega. “Contudo, definir por um modelo ou outro é estratégia institucional. Eu mesmo, quando tenho um pico de demanda na estrutura que gerencio, recorro à terceirização com players qualificados e que mantém uma entrega de qualidade”, conta Lacerda.

O que os entrevistados deixam bem claro é que a EC não pode ser negligenciada. É preciso investir, inclusive, em uma mudança cultural, disseminando, através das lideranças, a cultura de gestão de tecnologias médicas.

Regulamentação

Dezoito atividades fazem parte das atribuições do profissional, além da manutenção, entre elas consultoria, orientação técnica, padronização, condução de trabalho, ensino, pesquisa, fiscalização de obra e controle de qualidade

A RDC no 509 de 2021 trata de tecnologias em saúde de forma mais abrangente e engloba os equipamentos médicos. Para Lacerda, essa norma é um grande ganho para a área, pois tem feito com que conselhos de classe, como o CREA – Conselho Regional de Engenharia e Agronomia, atue na fiscalização profissional.

“Mas vejo que falta ainda uma legislação mais direcionadora e específica para a engenharia clínica que direcione papéis e responsabilidades distribuídas na área hospitalar, que indique também limitações de atuação e que norteie a valorização deste profissional. Esta não me parece ser mais uma visão tão longínqua, assim espero”, opina o gerente de Engenharia Clínica e SADT do Grupo São Cristóvão Saúde.

De acordo com Rocha, as normas que deveriam regulamentar a gestão de ativos hospitalares já existem e só precisam ser efetivamente cumpridas. “Já a regulamentação da profissão de engenheiro clínico, que vem sendo batalhada por anos pela ABEClin – Associação Brasileira de Engenharia Clínica, já ajudaria na rápida adoção por parte de mais estabelecimentos assistenciais de saúde, bem como na depuração do mercado, pois ainda existem profissionais pouco qualificados, que acabam colocando em risco os pacientes. Mas quem precisa mostrar valor são os profissionais que escolheram esta poderosa vertente das engenharias brasileiras”, comenta.

Sobre a questão da profissão, Brito explica que a engenharia clínica é uma derivação da engenharia biomédica. Quando o engenheiro biomédico atua no hospital, próximo do beira-leito, ele se torna um engenheiro clínico. “Há grupos que querem criar um título profissional com habilitação, eu sou contra, porque já há o engenheiro biomédico, que estudou arquitetura hospitalar, engenharia clínica e engenharia de segurança, dependendo da ênfase na sua graduação”, explica.

Ele lembra que não há engenheiros biomédicos em quantidade suficiente no Brasil, mas há os tecnólogos em sistemas biomédicos e os técnicos em equipamentos biomédicos, todos regulamentados. “O CREA fiscaliza o exercício do profissional, embora o termo ‘engenharia clínica’ não exista, mas sim, engenharia biomédica”, reforça.

Brito acrescenta que a engenharia biomédica é muito forte em outros países, mas aqui no Brasil está apenas começando. “Como não temos engenheiros biomédicos em quantidade suficiente, os cursos de especialização em engenharia clínica são a solução, embora a carga horária seja muito baixa. Formar um engenheiro especialista em 360 horas é uma tarefa difícil, então acredito que precisamos de uma certificação da qualidade profissional”, opina.

Redação

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