Acaba de ser publicado o primeiro estudo com dados coletados por pesquisadores usuários do Sirius, a fonte de luz síncrotron de última geração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização social do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações). O trabalho, publicado em uma edição especial do Journal of Molecular Biology revela detalhes processo de maturação da principal protease do vírus SARS-CoV-2.
Em setembro de 2020, quando a primeira estação de pesquisa montada no Sirius ainda estava em fase de testes, um grupo de pesquisadores do Instituto de Física da USP de São Carlos levou ao CNPEM cerca de 200 cristais de proteínas do vírus Sars-CoV-2 para serem analisadas na linha de luz, de nome Manacá. O objetivo era encontrar, na estrutura das proteínas, possíveis alvos para interromper o ciclo de vida do vírus a partir da ligação com outras moléculas, que podem dar origem a novos fármacos. Dez meses após as coletas realizadas no Sirius, é publicado o primeiro artigo científico com os resultados do estudo.
A Manacá foi a primeira estação de pesquisa do Sirius a receber pesquisadores externos, ainda durante a fase de seu comissionamento científico, como uma resposta emergencial à pandemia. Trata-se de uma linha de luz projetada para experimentos com cristalografia de proteínas usando a técnica de difração de raios X. “A Manacá nos permite identificar a posição de cada um dos átomos de uma amostra biológica, como proteínas do vírus SARS-Cov-2, para entender a sua morfologia e investigar os mecanismos de ação dessas proteínas, suas interações com outras moléculas e verificar o potencial para desenvolvimento de medicamentos”, detalha Ana Carolina Zeri, pesquisadora do CNPEM que coordena a linha Manacá.
O estudo
Quando o vírus Sars-Cov-2 entra na célula, ele sequestra a maquinaria celular e tenta se replicar, fazendo mais vírus. “Só que ele não faz um vírus pronto para infectar outras células, ele faz suas proteínas em um único bloco, que chamamos de poliproteina”, explica o Prof. Glaucius Oliva, coordenador do grupo de pesquisa da USP que realizou as primeiras coletas na Manacá. “Uma parte desse bloco é a protease, e a função dela é transformar esta poliproteina em suas partes que, ao se juntarem, podem reproduzir muitas cópias do genoma viral e das proteínas do envelope e assim gerar novos vírus, que são capazes de infectar outras células. O objetivo é parar este processo logo no início da ação da protease e assim impedir a produção de novos vírus nas células infectadas”.
Por isso, os principais alvos de estudo da equipe foram as proteases, e o Sirius tornou possível compreender processos do metabolismo dessa protease até então desconhecidos. Entre eles, revelou que, para que a protease Mpro (também denominada de 3CLPro) alcance a sua forma madura ela precisa se ligar temporariamente a outras cópias dela mesma, com o mesmo estado de maturação ou mais maduras.
O pesquisador Andre Godoy, da USP de São Carlos, foi um dos responsáveis pelos experimentos realizados no Sirius. Segundo ele, a partir das informações coletadas a equipe conseguiu obter informações detalhadas sobre as formas intermediárias que a principal protease do SARS-CoV-2 apresenta ao longo do seu ciclo de maturação dentro das células, o que é fundamental para o desenvolvimento de novas estratégias antivirais: “Usamos a Manacá para caracterizar, de forma inédita, múltiplas formas que a protease M-pro adquire ao longo do seu processo de auto maturação. Além disso, identificamos como pequenos fragmentos químicos se ligam em pontos específicos de uma dessas novas formas da enzima de SARS-CoV-2, que possui menos de 1% da atividade da forma madura”, explica.
O grupo tem em mãos outros dados coletados no Sirius e trabalha na busca de moléculas que possam atuar como inibidoras das proteases mais importantes na replicação de vírus como SARS-CoV-2. “Cada proteína dessas nos conta uma história. Cada proteína do vírus passa por uma série de processos internos que tem uma certa atividade. Nem todas são bem descritas. Nosso esforço maior é encontrar uma molécula que iniba as duas proteases. Tanto a PLpro quanto a Mpro. Temos planos para uma molécula que possa inibir ambas, o que inédito.”
Sirius contra o SARS-CoV-2
O acesso antecipado aos equipamentos foi parte de esforços coletivos do CNPEM para disponibilizar à comunidade científica brasileira recursos de ponta para estudos que pudessem contribuir para estratégias de combate à pandemia. “Mesmo com as dificuldades do trabalho remoto e revezamento de equipes, todos se empenharam ao máximo. Sabíamos da importância da Manacá para os estudos do Coronavírus e ficamos muito felizes em poder contribuir para o entendimento da biologia do vírus”, conta Andrey Nascimento, pesquisador do CNPEM que atua na linha de luz Manacá.
Para Lucas Sanfelici, responsável pela divisão de Engenharia de Linhas de Luz do Sirius, a Manacá foi muito simbólica, tanto pelo grande esforço e comprometimento da equipe diante dos desafios trazidos pela pandemia, quanto pela instalação, integração e operacionalização de uma série de equipamentos complexos desenvolvidos internamente. “Foi a ‘primeira vez’ de muita gente, com muitos sistemas sendo desenvolvidos simultaneamente. Tinha tudo para ser um processo mais longo, mas a vontade de ver esse trabalho de anos ganhando vida para ajudar na luta contra a Covid-19 potencializou esse resultado.”
Mas ainda há muito trabalho a ser feito, como destaca Harry Westfahl Jr., Diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS/CNPEM): “A expectativa é de que em breve possamos abrir mais cinco linhas de luz para que usuários possam conduzir suas pesquisas e, a depender de recursos orçamentários, outras oito estações deverão ser montadas no ano que vem”. As próximas linhas de luz a serem abertas para pesquisadores deverão apoiar pesquisas científicas de fronteira com potencial para beneficiar áreas como agricultura, meio-ambiente, energia e novos materiais, além de saúde.