No ano em que o Brasil testemunha a perda irreparável de quase 600 mil pessoas pela Covid-19 e o aumento do oportunismo por parte de uma parcela dos administradores públicos que se aproveitaram da crise sanitária para promover fraudes, o Câmara dos Deputados e o Senado aprovam mudanças na Lei de Improbidade Administrativa que podem fragilizar este importante instrumento no combate aos desvios éticos. Ao invés de criarmos mecanismos que facilitem a investigação dos malfeitos públicos, suprimimos os já existentes. Quando não existe transparência no Poder Público, existe corrupção.
O Projeto de Lei 2.505/2021 aprovado no Congresso Nacional não foi discutido pela sociedade civil. Ora, se existe uma espécie de contrato entre a sociedade e seus representantes, onde damos a eles o poder de nos representar, as regras desse pacto deveriam ser debatidas e alteradas após consenso entre as partes. A Lei da Improbidade tem como finalidade justamente carregar essa responsabilidade aos agentes públicos pelos seus atos. Mas os termos do compromisso com o povo foram alterados – flexibilizando as punições – sem diálogo. Pelo rumo tomado, se tornará mais difícil a imputação da responsabilidade daqueles que, no exercício de nos representar, nos gerarem prejuízos. Pior, este abrangerá os três níveis de governo: federal, estadual e municipal.
O Instituto Ética Saúde, que tem o compromisso de combater e prevenir a corrupção no setor da saúde, analisou o respectivo PL e apresentou aos parlamentares um documento com 12 argumentos de que a proposta de alteração não atende aos anseios da sociedade. Apesar de ter sido aprovado no Senado com seis alterações no substitutivo da Câmara, a proposta volta para os Deputados com quatro pontos de extrema relevância, que representam o afrouxamento das punições. Tópicos que precisam ser revistos: dolo específico e prescrição; restrição à punição; possibilidade para a não prestação de contas; e isenção de partidos políticos.
Um dos pontos mais críticos é a previsão de punição apenas para agentes públicos que mostrarem dolo, ou seja, intenção de lesar a administração pública. Atualmente, a lei considera improbidade administrativa “qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que cause lesão ao erário, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres”. A consequência dessa alteração é aumentar a impunidade, tendo em vista a dificuldade da prova da intenção do gestor público.
Vale lembrar que pelo menos 2,3% de tudo que é investido na saúde no Brasil se perde com fraudes. O orçamento destinado ao setor (público e privado) nos últimos anos correspondeu, em média, a 9,2% do PIB, o equivalente a R$ 680 bilhões. Ou seja, por ano, o país perde pelo menos R$ 22,54 bilhões. A pandemia da Covid-19 gerou novos investimento e mais despesas para o governo federal, que totalizam outros R$ 68,7 bilhões, segundo o portal da transparência do Tesouro Nacional, e outros tantos bilhões dos estados e municípios. Portanto, está claro que é necessário monitorar a efetividade das ações de combate aos desvios de conduta.
Um país que ocupa a 94ª posição no ranking mundial de corrupção da Transparência Internacional deveria criar mecanismos para facilitar a investigação dos desvios, não o contrário. Estamos andando para trás e abrindo brechas para ocuparmos posição ainda pior nesse levantamento global. O Instituto Ética Saúde vai continuar na luta para que não se disfarce a impunidade aos malfeitores.
Marcos T. Machado é diretor do Conselho de Administração do Instituto Ética Saúde