O crescimento populacional, a desigualdade no acesso e gastos que aumentam a cada ano são desafios na área da saúde em todo o mundo. Para mudar esse cenário e nos preparar para o futuro, especialistas explicam que é necessário repensar a forma como fazermos saúde. “Em 2017, a OMS deixou claro que não temos tempo hábil para formar mais médicos e acompanhar a demanda mundial da saúde”, disse Guilherme S. Hummel, head mentor no eHealth Mentor Institute (EMI), durante a palestra ‘Tecnologia associada à força de trabalho na saúde e os desafios da usabilidade’, realizada no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp). A mesa também contou com Eduardo Cordioli, gerente médico do Hospital Israelita Albert Einstein, Robson Capasso, reitor associado, chefe de cirurgia do sono e professor da Universidade de Stanford e Romeu Cortes Domingues, conselheiro Anahp, presidente-executivo do Conselho de Administração da DASA e moderador do debate.
O professor da Universidade de Standford trouxe dados de pesquisas realizadas nos Estados Unidos que nos permitem traçar alguns panoramas e conclusões, ainda que cada país tenha suas especificidades. “De tudo o que se gasta com saúde globalmente, 78% são consumidos por apenas 18% da população e, observando os Estados Unidos, existe uma disparidade no acesso à saúde e não existe quem pague os gastos financeiros, que a cada ano aumentam mais”, diz Robson Capasso.
Uma importante questão é também o crescimento populacional, que traz impactos em diversos setores e principalmente o da saúde, uma vez que todo individuo em algum momento da vida precisará de atendimento médico. “O déficit de acesso da saúde no mundo é o que causa a inflação de custeio na área médica e é um fator incontrolável até o final do século, pois não existirá um equilíbrio entre a demanda e a oferta. Precisamos nos planejar para uma cultura em que a função médica será mais de instruir e educar, do que de cuidador, pois precisamos que os indivíduos sejam mais independentes e conheçam a saúde básica”, complementa Guilherme Hummel.
Sobre os gastos na área da saúde, é possível traçar uma relação entre os países que gastam mais e o modelo de gestão utilizado. “Em países como França, Inglaterra e Alemanha, até os 65 anos de idade se gasta mais em saúde por pessoa do que nos Estados Unidos e, ainda assim, estes têm um gasto reduzido pela metade ao compararmos com o último país. A partir disso, vemos que esses países da Europa são geridos a partir de uma cultura preventiva e não reativa, mostrando que a medicina preventiva é capaz de detectar fatores de risco antes de um evento agudo, com isso o esforço e gastos feitos na prevenção é menor do que os feitos após a manifestação do evento”, explica Eduardo Cordioli.
Os palestrantes concordam que para atendermos às necessidades globais de saúde precisaremos atuar em times multidisciplinares, com variedade de médicos e outros profissionais, como os programadores e cientistas de dados. Uma solução proposta foi a educação da população para desde cedo conhecermos a saúde básica, garantindo maior independência e diminuindo a demanda na saúde. Além disso, citaram também a importância da telemedicina nesse processo e como os médicos precisam constantemente se educar para oferecerem atendimentos eficazes através das tecnologias.
Pandemia mostrou que telemedicina deve se manter como uma opção para o paciente
A pandemia trouxe de uma vez só uma série de situações novas para a população mundial. O que para alguns setores profissionais abriu caminhos de forma mais lenta, para a saúde, as mudanças exigiram decisões urgentes. Foi dessa demanda que surgiram inovações capazes de mostrar caminhos que devem se manter e outros que precisam ser desenvolvidos. O tema foi discutido no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp), durante a palestra ‘Como a pandemia acelerou as inovações e tecnologias em saúde’, que teve a moderação de Fernando Ganem, diretor geral do Hospital Sírio-Libanês e a participação de Diogo Dias, diretor clínico do Hospital Porto Dias, Joel Formiga, country manager na MphRx e ex-coordenador de inovação digital da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e Marco Bego, diretor executivo do Instituto de radiologia do InovaHC.
“A inovação começa pela necessidade do cliente, nasce da demanda e não da tecnologia”, afirmou Joel Formiga durante sua fala no evento. Ele atuou na linha de frente junto a outros profissionais quando a pandemia no Brasil estava em sua pior fase. “A primeira percepção que tivemos na Secretaria de Estado da Saúde foi que os dados precisavam ser valorizados, organizados, turbinados e principalmente compartilhados. Ou seja, precisávamos valorizar a informação”, conta.
Uma constatação que foi compartilhada por todos os participantes: a aceitação de canais digitais para tratar da saúde foi uma barreira ultrapassada por médicos e pacientes. Na opinião de todos, a telemedicina, que teve ampla aceitação e larga utilização, já apresentou diminuição. Mas, segundo observação de todos os profissionais, o uso da tecnologia deve continuar acima do período anterior à pandemia.
“Os canais digitais vão se estabilizar nessa nova realidade como os principais meios de comunicação e resolução de problemas, quando não forem os únicos”, conta Formiga. “A telemedicina é uma ferramenta que veio para ficar e muda o jogo para permitir o tratamento integrado. É fato que dessa primeira imersão nessa jornada já saímos com uma série de empresas que, inclusive, vão trabalhar apenas nessa vertical”, acrescenta Diego Dias.
Em outra frente, mas que também ganha a concordância entre os participantes, está a organização dos dados e aplicação de inovações. “Durante a fase mais crítica da pandemia, tínhamos quase 70 inciativas inovadoras nos processos que adotávamos. Passada essa fase, temos 20 atualmente. Nosso maior desafio foi fazer com quem as linguagens – tecnologia e medicina – se falassem sem obstáculos. Hoje, percebemos que conseguimos fazer essa ponte”, finaliza Marco Bego.
A convivência harmônica entre o compartilhamento de dados e a privacidade é um dos maiores desafios atuais
A Lei Geral de Proteção de Dados sancionada em 2020 apontou quais devem ser os rumos do uso de dados no Brasil. Entretanto, ainda há uma ‘zona cinzenta’ sobre o assunto, como diz Fábio Cunha, coordenador do Grupo de Trabalho Legal-Regulatório da Anahp e diretor Jurídico, Compliance, Relações Governamentais e ESG na Dasa, que foi moderador da plenária ‘Governança de dados com o avanço das inovações trazidas por novas tecnologias’, realizada no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp). O debate contou também com a presença de Rogéria Leoni Cruz, coordenadora do Grupo de Estudo de LGPD da Anahp e diretora jurídica do Hospital Israelita Albert Einstein, Barbara Ubaldi, head de digital e governança de dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) e de Waldemar Ortunho Junior, diretor-presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Um dos pontos principais levantados pelos participantes foi o conflito de interesses comerciais que ameaça o compartilhamento desses dados entre os sistemas privado e público, por exemplo, se configurando em um obstáculo que deixa de ser técnico. Para Barbara, o uso dos dados faz parte das transformações digitais do mundo todo e deve ser entendido como um recurso chave para todos os setores. “O crescimento com o uso de dados é muito mais preciso. É essencial abrir as informações para o setor público, com esforços combinados os resultados são melhores e as decisões mais coerentes”, afirma.
Outro obstáculo se relaciona com a cultura, ou seja, com o risco de armazenar e o medo de ter um vazamento desses dados geram. De fato, o risco existe, mas para o presidente da ANPD, Waldemar Ortunho Junior, “é fundamental usar novas tecnologias mitigando esses riscos, com técnicas que vão proteger os dados que oferecem mais atratividade ao invasor”.
Na mesma trilha, segue o ponto de vista de Rogéria Leoni Cruz. “Lidamos com dados sensíveis e a medicina tem se inovado. Temos que dar oportunidade para essas mudanças, mas, ao mesmo tempo, temos que lidar com a privacidade e a segurança. Muitas organizações já estão conseguindo enxergar as vantagens práticas de uma segurança de dados, seja por uma melhor estratégia ou pela melhor organização e confiança do cliente. Isso aprimora a tomada de decisões, e permite uma gestão efetiva de riscos”, conta.
“Reduzir desigualdades e disparidades por meio da inteligência artificial é um dos principais objetivos. Os cuidados devem chegar a todos”, diz Greg Corrado, neurocientista e pesquisador do Google
Por trás de cada tecnologia que utilizamos hoje como a leitura de código de barras pelo celular, decodificação de áudios em textos e os próprios avanços nos estudos da inteligência artificial estão pessoas, pesquisadores comprometidos a tornar a vida melhor. A inteligência artificial está em desenvolvimento no mundo e a utilização dela para área da saúde pode resultar em ganhos imensuráveis. Greg Corrado é neurocientista do Google e encerrou o ciclo de palestras desta edição do Conahp e quem mediou a apresentação foi o vice-presidente da Comissão Científica do Conahp2021, Charles Souleyman.
De forma geral, a inteligência artificial já está na palma de nossas mãos. Pelo celular podemos acessar o Google Fotos, por exemplo, e ver agrupamentos e pesquisas sofisticadas de reconhecimento facial a partir de qualquer aparelho. Outra forma de vermos a inteligência artificial sendo aplicada é por meio da capacidade dos celulares de entenderem idiomas, traduzirem conteúdos e aceitarem comandos somente a partir da voz humana, com toda as variações que elas possam ter.
A inteligência artificial, segundo Greg, pode ser pensada como útil tanto a usuários quanto a empresas. Para a maioria das ações atuais, mesmo as repetitivas e complexas, a programação dos computadores facilita a rotina. A parte mais profunda da inteligência artificial é que já podemos construir máquinas capazes de aprender com os dados. Atualmente, o Google lê imagens a partir de pixels, há softwares capazes de reconhecer qualquer discurso humano e, ainda, traduzir falas para outros idiomas de forma quase automática. Todos esses sistemas foram aprimorados com o tempo. Eles passaram por um processo de aprendizagem por meio da inteligência artificial.
“Muita gente acha que a inteligência artificial é feita para prever as coisas. Talvez fosse mais acurado dizer que a grande função dela seja reconhecer as coisas”, afirma Greg. Os dados trabalhados pela inteligência artificial facilitam o reconhecimento de forma intuitiva, por exemplo, de uma categoria ou condição. A máquinas aprendem ao imitar modelos. Se quisermos criar um sistema capaz de reconhecer imagens de gatos e cachorros, por exemplo, precisamos dar a ela modelos básicos desses animais.
Na relação desse tipo de inteligência com a capacidade de aprendizagem humana, a base está num método conhecido como ‘deep learning‘. Isso é basicamente a reencarnação de uma tecnologia chamada de redes neurais artificiais que existe desde 1980. E esse modelo se baseia em como humanos aprendem as coisas, na forma como a capacidade humana processa o aprendizado. Nesse modelo, cada neurotransmissor se associa a outros formando redes artificiais ou neurais capazes de fazer com que as tarefas programadas sejam realizadas.
“As máquinas hoje, por exemplo, podem enxergar. É possível categorizarem imagens, localizarem e descreverem conteúdos imagéticos. Nesse sentido, é possível que essa tecnologia seja usada para ler imagens médicas, reconhecer deformidades, exames e facilitar a compreensão de fraturas, por exemplo”, anuncia Greg.
Uma das medidas citadas pelo neurocientista em relação ao trabalho desenvolvido pelo Google na área da saúde tem relação com o diabetes e foi desenvolvido com parceiros na Índia. Na região onde o experimento foi feito havia poucos profissionais capazes de fazerem o diagnóstico da doença através da retina dos pacientes. Assim, máquinas foram desenvolvidas para serem capazes de realizar um tipo de triagem diagnóstica. Foram tiradas 130 mil imagens de retinas e, com a ajuda de profissionais, o nível de diabetes foi categorizado. O resultado foi o desenvolvimento de um sistema capaz de verificar a doenças em pacientes de forma bem próxima a percepção de médicos treinados.
Segunda analisa Greg, as inteligências humana e das máquinas são complementares. Enquanto humanos são excelentes em extrapolar a partir de um pequeno número de exemplos, as máquinas são muito eficazes fazer interpolação dentro de muitos exemplos. Máquinas programadas com grandes quantidades de dados históricos e humanos são melhores em eficiência analítica.
É preciso perceber que esses sistemas de inteligência artificiais não são caixas pretas inacessíveis e cujo conteúdo interno seja completamente desconhecido. “A gente acredita que os sistemas artificiais podem colaborar com as pessoas da mesma forma que as pessoas colaboram entre si”, diz o neurocientista. Esse tipo de inteligência seria capaz, inclusive de explicar o porquê de escolher categorizar suas percepções a partir de sua programação. “Voltando ao exemplo do diagnóstico de diabetes, por exemplo, o sistema pode mostrar a causa pela qual escolheu categorizar a doença no indivíduo como moderada”, afirma Greg.
Outros caminhos são possíveis para estreitar o relacionamento de forma ainda mais próxima entre a gestão de dados e a medicina. Dentre eles estão os processos de criação de medicamentos que utilizam dados, identificação de erros de amostragens ou mesmo feitura de triagens. Em última instância, o valor do uso da inteligência artificial estaria na criação de um sistema de saúde de aprendizagem. O ideal é que cada vez que se atende um paciente, a experiência seja melhorada para um próximo paciente. Os sistemas de machine learning podem nos dar diretrizes importantes para aumentar a eficácia do sistema como um todo e melhorar a experiência de quem os utiliza.
Sobre a atuação do Google na pandemia, o neurocientista ressaltou que a empresa percebeu a importância da informação correta e que, utilizada na hora certa, pode salvar vidas. Sobre o uso do Google no autodiagnóstico dos usuários, Greg alertou que “apesar das ferramentas e informações estarem disponíveis, há um jeito certo de usá-las. É complexo. Nossa jornada na saúde é entender o papel da tecnologia e o papel que ela não é capaz de desempenhar”, analisa o neurocientista. “Eu acredito que vai levar muitos anos, mas, no futuro, seremos capazes de estar em um lugar onde a tecnologia será mais utilizada, difundida e confiável. Há muito para se caminhar, mas é possível sonhar com uma medicina preventiva em nível global, com o apoio e o trabalho de muitas pessoas e instituições”, finaliza.