Artigo – A diferença entre o remédio e o veneno

Desde o início da pandemia de Covid-19 a população mundial tem sido submetida a diferentes níveis de distanciamento social raramente vistos fora de períodos de guerra. A experiência de epidemias prévias e dados extraídos da pandemia da gripe espanhola de 1918 sugerem que medidas que reduzam a disseminação do novo Coronavírus e o achatamento da curva podem reduzir o número de mortes e os impactos econômicos de longo prazo da doença.

Igualmente impressionante como a velocidade de disseminação da doença são os efeitos secundários do pânico e da irracionalidade. Estimativas das sociedades brasileiras de Patologia e de Cirurgia Oncológica indicam que ao menos 50 mil pessoas com câncer deixaram de ser diagnosticadas nos últimos dois meses.

A prevenção secundária por rastreamento, como as utilizadas nos tumores de colo uterino, colorretais, pulmão e mama, é a espinha dorsal do diagnóstico precoce e aumento das chances de cura. O abandono de exames como o Papanicolau, endoscopias digestivas, tomografias de baixa dose e mamografias podem custar vidas que não vemos ponderadas nas estatísticas do Covid-19.

O comportamento humano é complexo e frequentemente não é guiado pelos melhores interesses. O psicólogo e laureado pelo Prêmio Nobel, Daniel Kahneman, mostrou como os vieses cognitivos podem explicar o comportamento aparentemente irracional da gestão do risco pelos seres humanos. Deixar de realizar exames em ambientes controlados com medidas de mitigação de risco de contaminação por Covid-19 podem não ser uma decisão adequada.

Pior ainda, não realizar um tratamento potencialmente curativo como uma cirurgia, quimioterapia ou radioterapia – quando diante do diagnóstico do câncer, certamente reduzem as chances de cura também de forma exponencial.

O Brasil vive uma crise de saúde que, de tão prolongada, já se tornou silenciosa. Não chama a atenção a falta de insumos básicos em unidades de saúde ou mesmo pessoas morrendo sem assistência. A Sociedade Brasileira de Radioterapia, em um projeto de pesquisa junto à Fundação Dom Cabral, Ministério da Saúde e entidades civis estima que apenas 50% dos casos de câncer com indicação de radioterapia tenham acesso a esse serviço.

Um provável acúmulo de casos avançados de câncer pode encontrar um sistema também colapsado.

Medidas de isolamento são extremamente necessárias no momento e salvam vidas. É urgente a necessidade de encontrarmos meios para realizá-lo sem que cause danos ainda maiores na população. Já foi dito, em frase atribuída ao médico e físico suíço Paracelso, que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

 

 

 

Leonardo Pimentel é médico radio-oncologista, coordenador do Serviço de Radioterapia do Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte (MG), e membro da comissão de ética e defesa profissional da Sociedade Brasileira de Radioterapia

Redação

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