No Brasil existem poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema da liberdade de morrer. Julgados, então, praticamente, inexistem. Tal fato se justifica porque até outro dia o Brasil era um país de jovens, onde as pessoas morriam antes dos 60 anos, vítimas das mais diversas mazelas que afligem países subdesenvolvidos. Porém, percebe-se que a situação começa a mudar e em pouco tempo o país será um país de idosos. Projeções do IBGE indicam que até 2050 o número de idosos no país deve ultrapassar 64 milhões de pessoas.
Hoje, as pessoas vivem mais e a medicina tem condições, em algumas situações, de prolongar a vida das pessoas. Existem recursos médico-tecnológicos que possibilitam a continuidade da vida, mesmo que seja em estado vegetativo.
Portanto, a discussão sobre a liberdade de morrer, diante dessas novas conjunturas, passa a ser plausível, não podendo ser tratado como tabu ou heresia. É claro que questões religiosas devem ser trazidas para o debate, porém, racionalmente, é possível imaginarmos situações onde a continuidade da vida é realizada sem qualquer qualidade ou até mesmo de forma atentatória à dignidade da pessoa.
Afinal, a pessoa tem liberdade para decidir que tipo de tratamento médico deseja que lhe seja aplicado? Pode o Estado obrigar alguém a viver preso a aparelhos?
Na obra Autonomia Privada e Direito de Morrer, Rachel Sztajn, a eminente professora associada da USP, questiona se devemos permitir que a natureza siga seu curso normal até a morte ou o processo de morrer pode ser antecipado? É dever do profissional da saúde alterar o curso da natureza quando voltado para prolongar a vida ou pode, ao contrário, não o fazer, deixar de interferir no curso da moléstia e permitir a morte?
Nos hospitais há esforço hercúleo, com alta tecnologia, para manutenção da vida. Isso tem, em muitos casos, onerado excessivamente o custo da saúde. E muitas vezes representam uma vida sem qualidade, presa a aparelhos e com tratamentos dolorosos ou debilitantes. Diante deste quadro, a questão da eutanásia e variantes devem ser devidamente analisadas pelos profissionais do direito e precisam ser debatidas pela sociedade brasileira.
Reitera-se que esta não é uma questão de fácil resolução, devendo todos os aspectos serem considerados, principalmente para que a liberdade de morrer seja exercida com total autonomia. Na maioria dos países, a eutanásia é considerada crime, não obstante juristas, médicos e, até mesmo, teólogos, reconhecerem que a matéria é extremamente complexa. No Brasil, o tema da eutanásia passa ganhar nova dimensão em face do aumento da expectativa de vida dos brasileiros e do avanço tecnológico da medicina, que possui recursos para prolongar a vida dos pacientes, mesmo que seja para mantê-los em estado vegetativo.
Alude-se que o Enunciado 533 da VI Jornada de Direito Civil evidencia que “o paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que não possam ser interrompidos”. Esta redação entende que tal exegese está em conformidade com o disposto no art. 15 do Código Civil, justificando que o crescente reconhecimento da autonomia da vontade e da autodeterminação dos pacientes nos processos de tomada de decisão sobre tratamento de saúde é uma das marcas da contemporaneidade.
Urge, portanto, analisar o que se deve entender por respeitar o princípio da dignidade da pessoa. Será que o prolongamento da vida de um paciente em estado terminal, que não possui chances de cura, impingindo-lhe tratamentos inúteis ou obstinados, que somente lhe resultem em mais sofrimentos e custos é, de fato, uma atitude humana, simplesmente em respeito à sacralidade da vida?
É preciso pensar se cabe ao estado a função de obrigar uma pessoa a continuar a sua vida presa a aparelhos. Ou seja, ao prolongamento artificial da vida. Necessário refletir se os médicos são obrigados a manter uma pessoa em estado artificial ou se deveriam deixar que a vida siga o curso normal.
Constata-se que as iniciativas do Conselho Federal de Medicina, no Código de Ética Médica e na Resolução CFM 1995/2012, já representa avanços expressivos, porém tais assuntos não podem ficar restritos a uma visão corporativa, devendo ser amplamente debatidos por toda a sociedade. Deve o parlamento brasileiro, após discussão pública, estabelecer uma legislação própria para a realidade brasileira. As leis precisam assegurar que os cidadãos possam exercer de forma consciente, livre e soberana, suas vontades. Deve o estado oferecer todo o amparo necessário e evitar que o testamento vital seja utilizado para interesses ilícitos e não éticos, seja pelas famílias dos pacientes, seguradoras, planos de saúde e o próprio estado.
As legislações da Bélgica, Holanda e Portugal representam importante norte para o debate. Porém, é preciso buscar uma solução nacional com respeito às características próprias do povo brasileiro. Válido lembrar que muitos brasileiros ainda não têm acesso à educação, que dirá à saúde, para avaliar determinadas situações e exprimir, de forma livre e consciente, sua opinião.
Existem, ainda, os aspectos familiares, econômicos e sociais que certamente precisam ser sopesados nesta seara. Ademais, é inegável que a sociedade caminha para o reconhecimento da autonomia da vontade, no sentido amplo, assegurando o consentimento informado e, sobretudo, a liberdade de escolha.
José Luiz Toro da Silva é sócio fundador do Toro Advogados