Artigo – A sustentabilidade da saúde é também papel das sociedades de especialidades

O sistema de saúde do Brasil (público e privado) é extremamente complexo e tem um compromisso social abrangente. Aspectos como acesso, financiamento e gestão estão na ordem do dia. As sociedades de especialidade tem, sim, papel relevante nesse contexto, pois atuam na titulação e atualização dos especialistas, sendo responsável pela difusão do conhecimento, com esteio na ciência baseada em evidências.

A qualificação médica é fator preponderante na eficiência da saúde e fundamental na sustentabilidade do sistema como um todo. A autonomia do médico é um dos preceitos da ética biomédica, o Código de Ética Médica estabelece que “é direito do médico: indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.” Nesse sentido, as Diretrizes societárias devem ser a referência de práticas cientificamente reconhecidas.

As Diretrizes, elaboradas tradicionalmente pelas sociedades de especialidade, norteiam a atividade profissional do médico e são úteis para respaldar políticas públicas que podem resultar em melhores indicadores de saúde para o Brasil.

O rigor na avaliação da qualidade da evidência científica deve nortear a elaboração de qualquer Diretriz, por vezes, nos deparamos com conflitos de interesse decorrente da relação com a indústria dedicada à saúde. Assim, benefícios limítrofes verificados em Ensaios Clínicos Randomizados (ECR), muitas vezes financiados pela indústria, não podem servir para ensejar recomendações fortes em Diretrizes de uma sociedade científica.

O país clama por ética e a transparência na elaboração destes documentos deve ser continuamente perseguida. Não podemos nos furtar a olhar de frente para essa questão. Integrante de Diretriz que tiver conflito de interesse com qualquer tema a ser recomendado não pode participar do processo decisório, a simples exposição de conflito de interesse já não é mais suficiente.

Defendo uma maior independência neste processo que não pode mais, simplesmente, compilar o expresso nas diretrizes das sociedades internacionais. No caso da cardiologia, os documentos da European Society of Cardiology, do American College of Cardiology e da American Heart Association, são as referências. Apesar da grande expertise dessas sociedades, precisamos ter documentos mais condizentes com a realidade brasileira e comprometidos com a sustentabilidade do sistema de saúde do Brasil. É evidente que a literatura internacional é importante e precisa ser avaliada e estudada, mas é necessário ponderar cada ponto para conferir relevância e equilíbrio a cada recomendação anotada em uma Diretriz.

No caso de terapias inovadoras, por exemplo, procedimentos ou fármacos ainda não aprovados pelas instâncias regulatórias brasileiras, as recomendação para uso no país devem ser ponderadas. A recomendação de condutas não referendadas em políticas públicas ou da saúde suplementar pode servir para estimular litígios contra o Estado brasileiro, uma agenda de risco que inverte prioridades e compromete a sustentabilidade do sistema. No mesmo sentido, recomendar em Diretrizes terapias para as quais os médicos brasileiros ainda não estejam plenamente capacitados, sobretudo procedimentos invasivos e cirúrgicos, deve ser visto com cautela.​​

Como a maior parte da população é atendida pelo Sistema Único de Saúde, as Diretrizes devem levar em consideração além da evidência científica a sustentabilidade econômica das recomendações.

Por força de uma legislação (Lei Orgânica da Saúde número 8.080/90), a competência de elaborar Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, no âmbito do SUS, é do Ministério da Saúde, especificamente da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec). Embora a Diretriz de uma sociedade científica obedeça a uma lógica distinta de uma Diretriz governamental, não se pode, simplesmente, desconsiderar os conceitos utilizados no Ministério da Saúde para elaboração dos documentos. Até para se criticar e sugerir alterações à Conitec, se for necessário.

A sustentabilidade da saúde passa, necessariamente, pelas entidades de especialidade e o papel que elas têm na sociedade em geral. As Diretrizes societárias precisam não só ter credibilidade e independência para continuar a nortear a decisão dos médicos, mas também para orientar os técnicos da saúde suplementar e do próprio Ministério da Saúde.

As sociedades científicas, amparadas na tradição e credibilidade junto aos médicos, devem contribuir na difusão do conhecimento técnico e científico consolidado, por intermédio da elaboração de Diretrizes apropriadas, conferindo eficiência à ação médica para interferir positivamente na adoção de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, como prescreve a Constituição Federal.

 

 

Marcelo Queiroga é presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)

Redação

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