Lesões na cartilagem são uma causa de dor cada vez mais frequente na população, afetando desde adolescentes até idosos. Além da dor, o paciente pode sentir estalos, travamentos e inchaço da articulação. Esses sintomas atrapalham a prática de atividades físicas, levando a obesidade e ao sedentarismo. Além disso, a lesão pode ir piorando com o tempo e aumentando de tamanho. Quando ela fica muito grande, destrói a articulação de forma irreversível, um processo conhecido como artrose.
O joelho, maior articulação do corpo humano, é o local mais afetado. Mas outras articulações como tornozelo, quadril, ombro e cotovelo também podem apresentar problemas na cartilagem.
A cartilagem articular é um tecido esbranquiçado que cobre as extremidades dos ossos. Suas funções são:
– Proteger a articulação de cargas mecânicas compressivas;
– Diminuir o atrito das partes em movimento;
– Ser um poderoso antiaderente que evita a formação de fibrose entre os ossos, que bloquearia os movimentos da articulação;
– Evitar que o líquido sinovial penetre no osso, causando inflamação e formação de cistos.
A cartilagem não tem vasos sanguíneos nem nervos, por isso cicatriza muito mal. Quase todos os tratamentos existentes atualmente são apenas sintomáticos. O objetivo é o alívio da dor com exercícios, perda de peso e medicamentos. Em casos refratários, existem cirurgias para tentar estimular a cicatrização. Mas todas elas têm efeitos colaterais preocupantes, em geral relacionados com a destruição do osso subcondral. São indicadas para lesões pequenas, menores do que 2 cm. Os exemplos mais comuns são as microfraturas e a mosaicoplastia.
Só que CICATRIZAÇÃO é diferente de REGENERAÇÃO. Cicatrizar é formar um tecido sobre a lesão. Esse tecido é diferente do original. Regenerar é reconstituir o tecido 100% original.
A integridade da cartilagem depende do condrócito, uma célula produtora da matriz extracelular responsável pelas propriedades do tecido.
Há 27 anos o The New England Journal of Medicine, a revista com maior impacto na área médica, publicava o artigo dos suecos Matts Brittberg e Lars Peterson, descrevendo os resultados clínicos promissores de uma técnica avançada de terapia celular, batizada de Autologous Chondrocyte Implantation (ACI). No bom português, Implante Autólogo de Condrócitos. O processo, que vinha sendo desenvolvido em laboratório sem muito estardalhaço, ganhou popularidade e iniciou a corrida para a era da terapia celular das lesões da cartilagem articular. A partir do artigo de Brittberg em 1994, foi possível começar a sonhar com a regeneração da cartilagem. Isso acabaria não só com os sintomas, mas evitaria a progressão para artrose.
Nestes 27 anos, a técnica passou por crises que promoveram sua evolução até o estado atual da arte. Essa evolução costuma ser dividida em fases ou gerações. Dizemos que estamos na quarta geração dos condrócitos:
Primeira geração: técnica descrita por Brittberg e outros pesquisadores. Após uma biópsia artroscópica, um fragmento de 3 mm de cartilagem era enviado para o laboratório, onde os condrócitos eram isolados. Depois de 4 semanas em expansão, eram implantadas no dano da cartilagem do joelho do paciente. Como as células vinham num frasco em meio líquido, era preciso retirar um pedaço do periósteo (membrana que recobre o osso da canela). Esse periósteo tinha que ser suturado sobre a lesão para criar um selo à prova d’água. Dependendo da localização do machucado, o processo era impossível. O liquido tinha que ser cuidadosamente injetado embaixo do periósteo, mas, às vezes, vazava. A pior complicação foi que o periósteo produziu osso dentro da lesão da cartilagem. Isso criava um calombo chamado Hipertrofia, que ocorria em quase 30% dos casos.
Segunda geração: Em 2007, Gommol e colegas publicaram os resultados do ACI usando uma membrana de colágeno porcino substituindo o periósteo, resolvendo a Hipertrofia. Mas a dificuldade da sutura à prova d’água e vazamentos continuava atormentando os cirurgiões.
Terceira geração: Em 2014, Saris e equipe publicaram os resultados do estudo multicêntrico europeu SUMMIT, no qual os condrócitos foram colocados dentro da membrana porcina, técnica que ficou conhecida como MACI (matrix-assisted chondrocyte implantation). O MACI resolveu o problema da sutura difícil e dos vazamentos. Basta colar a membrana na lesão. O MACI venceu a microfratura no estudo SUMMIT e mostrou que, pelo menos nos machucados maiores que 2 cm, o condrócito é o tratamento padrão-ouro. Em 2016 o FDA nos Estados Unidos, e a EMA na União Europeia, autorizaram o uso comercial do MACI naqueles países.
Quarta geração: Mas nem todos os problemas estavam resolvidos. Mesmo o MACI não consegue regenerar a cartilagem. As três primeiras gerações de condrócitos conseguem promover uma cicatrização melhor, mas o tecido formado continua sendo fibrocartilagem, longe ainda da regeneração. Em 2017, Becher e outros pesquisadores publicaram os resultados do estudo COWISI, que levou a EMA a aprovar o uso de um novo produto, o Spherox. O Spherox é baseado na aplicação de condroesferas desenvolvidas com tecnologia de engenharia de tecidos e técnicas de bioimpressão 3D. Ou seja, em vez de implantar células, é implantado um pedaço de cartilagem composto por células e matriz extracelular. Dispensa o uso da membrana porcina e da cola de fibrina, produtos de origem animal. A aplicação de tecido formado em laboratório é considerada a quarta geração do condrócito.
Além disso, novas evidências sugerem que células-tronco da própria pessoa podem ser usadas para substituir o condrócito, simplificando a cirurgia, que pode ser realizada num tempo só. Já estão disponíveis no Brasil para uso clínico produtos como Chondrogide (membrana de colágeno) e CaReS-1S (hidrogel de colágeno), que podem induzir a formação de cartilagem a partir das células do paciente. O Lipogens, também disponível no Brasil, vem apresentando bons resultados nos casos de artrose leve, usando células obtidas da gordura micro fragmentada do próprio paciente.
Ainda não sabemos se finalmente conseguiremos a regeneração da cartilagem, mas alguns desafios ainda persistem:
– O alto custo, que ainda inviabiliza o uso em larga escala, principalmente nos sistemas públicos e nos países em desenvolvimento;
– A necessidade de duas cirurgias;
– A reabilitação trabalhosa e demorada.
A Unicamp está bastante adiantada nas pesquisas de tratamento da cartilagem do joelho com células-tronco. Os estudos que precisavam ser feitos em laboratório e em animais de teste já foram concluídos, tendo sido publicados em importantes revistas científicas internacionais e até reconhecidos com premiações em congressos no Brasil e no Canadá. Com isso, já é possível começar a preparar o caminho para a realização de estudos em pessoas que sofrem com dor crônica na articulação e não conseguem melhorar com os tratamentos existentes.
Ao contrário das células-tronco retiradas da medula óssea, que são as mais utilizadas em pesquisa porque foram descobertas primeiro, as da gordura (AT-MSCs) são mais numerosas, duram mais tempo no laboratório e são mais fáceis de serem obtidas porque o corpo humano tem uma quantidade enorme de gordura embaixo da pele. Dá para retirar com uma agulha e anestesia local. Já a punção da medula óssea é um procedimento doloroso.
Outra vantagem é que ao usarmos as células da própria pessoa não ocorrem rejeição e transmissão de doenças. As células-tronco de embriões envolvem problemas éticos muito graves, diferente das AT-MSCs da própria pessoa.
Alessandro Zorzi é médico ortopedista e pesquisador