Artigo – Fraudes no setor da saúde: é preciso governança e ética

Estamos vivendo no Brasil a multiplicação da demanda na área de Compliance, o que é um aspecto positivo. Ao analisarmos o setor de saúde, percebemos que ele segue a mesma tendência. Em meio à pandemia de Covid-19, nos deparamos com diferentes preocupações neste segmento, principalmente quando lidamos com uma área explorada pelas empresas particulares por meio de concessão pública.

Entre os cuidados, podemos destacar alguns riscos nessa atividade que devem ser considerados, como a compras de medicamentos ou equipamentos superfaturados, o uso e a cobrança indevidos de remédios, os órteses, próteses e materiais especiais, os médicos que possuem cargos públicos, as instituições privadas que atendem demandas de prefeituras, assim como irregularidades envolvendo os diversos conselhos dos funcionários do setor.

Neste momento, chama a atenção os casos de corrupção privada e pública e as fraudes realizadas pelos hospitais, clínicas e convênios. Há claros motivos para nos preocuparmos, principalmente quando sabemos que o setor sempre funcionou com muitas dessas irregularidades, que já estão enraizadas. Mas, aquilo que ouvíamos como “isso faz parte” ou “só funciona assim”, tem incomodado cada vez mais.

Para exemplificar este cenário, há estudos apontando que a cada R$ 100,00 pagos pelos planos de saúde a hospitais, clínicas, laboratórios e médicos, R$ 15,00 correspondem a algum tipo de fraude. Estamos falando de pacientes fantasmas, consultas nunca realizadas, remédios genéricos cobrados como sendo de marca e por aí a lista segue. Do lado dos hospitais, vemos investimentos em pessoal e equipamentos que não dão retorno, pois médicos “desviam” pacientes para colegas, clínicas particulares e outros hospitais recebendo comissões pelo encaminhamento.

E nessa turbulência ocorrida no setor após o início da pandemia, podemos destacar a quantidade de respiradores comprados com valores superfaturados por empresas de fachada, que inclusive se encontram encostados e já sucateados, sem condições de uso, enquanto pacientes agonizam pela sua falta. Os problemas vêm de todos os lados e nem se quer mencionamos as recusas de tratamento e casos de assédio envolvendo funcionários.

Consequentemente, a população tem que lidar com um plano de saúde mais caro, além de ser jogada de um lado para o outro. O hospital dirá que o problema é o plano e vice-versa, e, aos que ao menos têm acesso à justiça, liminares vão sendo proferidas pelo judiciário. Vale destacar que algumas instituições apenas seguem a lei com determinação judicial.

Em 2019, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) tentou regulamentar o setor por meio da Resolução Normativa 443, que previa a adoção de práticas mínimas de governança corporativa, tendo em vista as operadoras de planos de saúde. O objetivo era trazer os princípios da transparência, da equidade e da responsabilidade corporativa como vetores de governança por meio de controles internos e gestão de riscos.

Há também outras iniciativas, como as diversas vedações no Código de Ética Médica (RCFM 2.217/2018) que, de forma explícita, proíbem receber quaisquer vantagens por pacientes encaminhados, tratando o artigo 64 especificamente dos desvios de pacientes do sistema público, além do artigo 69, que trata sobre vantagens recebidas pelo encaminhamento de procedimentos pela prescrição ou comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza.

Podemos notar claramente a produção normativa de diretrizes que norteiam o caminho a ser trilhado pela área da saúde e que, aos poucos, os setores começam a se alinhar culturalmente e normativamente. Alguns hospitais já estão vivendo essas mudanças não apenas pela alteração de paradigma nacional, mas também pelas aquisições das instituições privadas de saúde brasileiras por instituições norte americanas, as quais têm esse modelo há mais tempo que nós.

Vale citar que, além dos pontos acima, a pandemia tem sido um cenário rico para o cometimento de diversos ilícitos diferentes. Recentemente, um grupo tentou vender para o Ministério da Saúde um lote com 200 milhões de doses da vacina contra o Covid em nome de um consórcio farmacêutico. Isso sem contar os diversos “fura-filas” das vacinas, que vão desde funcionários da saúde que alegam falsamente estarem na linha de frente, até os desvios de vacinas de dentro de hospitais para imunizar alguns “privilegiados”.

Portanto, assim como empresas de capital aberto ou quaisquer empresas que possuem direcionamento voltado a todos seus stakeholders, esperamos ver efetivamente a mudança nas governanças corporativas das empresas da área da saúde, abarcando setores focados em garantir a existência de boas práticas corporativas para que as mesmas estejam em ordem não apenas com a legislação, mas também com a ética vigente, principalmente neste momento pandêmico, no qual a maleabilidade ética de pessoas aparecem com mais clareza.

André Navarro Lourenço é consultor e Clara Kaplan é gerente sênior, ambos da área forense e de investigação empresarial da ICTS Protiviti, empresa especializada em soluções para gestão de riscos, compliance, auditoria interna, investigação, proteção e privacidade de dados

Redação

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