Considerado por muitos “o pai do sci-fi”, o escritor francês Julio Verne previu tecnologias inovativas e as lançou a outro nível. No conto Da Terra à Lua, de 1865, o autor não apenas descreveu a viagem à lua, realizada mais de um século depois, como também fez os cálculos necessários, detalhou que duraria três dias e desenhou o “Projétil”, nome dado ao ônibus espacial.
Nas suas obras, mencionou 108 conceitos e invenções sobre ficção científica, dos quais 70 existem hoje: ônibus espacial, televisão e ar condicionado, por exemplo. No artigo In the Year 2889, de 1889, descreveu um aparelho no qual seria possível conversar por voz e vídeo à distância. Somente em 1925, o alemão Hugo Gernsback voltou ao conceito com o Teledáctilo, rascunho do que agora é conhecido como teleconsulta.
Quase um século após a publicação de Gernsback, a telemedicina ainda engatinha. Por quê? Temos rastreadores de atividades, wearables e sensores de saúde. Temos a medição de dados, bem como a recuperação de prontuários e informações médicas arquivadas. Estima-se um gasto de cerca de U$ 220 bilhões em telemedicina no mundo até 2030.
O ceticismo e o receio sobre “máquinas substituindo humanos” dificultam a adoção de novas tecnologias. Ainda que a pandemia tenha provocado um choque de realidade e acelerado inovações em muitas áreas, a digitalização da saúde continua atrasada. Telemedicina, inteligência artificial (IA) e realidade virtual e aumentada estão disponíveis para médicos, pacientes e hospitais, mas ainda há paradigmas e crenças que precisam ser desmitificados.
É inevitável que inovações como dispositivos vestíveis, telemedicina e genômica sejam — e já estão sendo — implementadas. A IA é usada, por exemplo, para predizer com melhor acurácia e antecedência a piora clínica de pacientes internados. Há também algoritmos que contribuem com a prescrição de remédios, evitando interações medicamentosas que podem atingir níveis aterrorizantes de mais de 90%, dependendo do número de drogas em uso. Inúmeros estudos comprovam o uso de realidade virtual ou realidade aumentada para tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, bem como estresse pós-traumático. Algumas cirurgias em hospitais do Brasil já utilizam essas ferramentas para que os procedimentos tenham maior precisão.
Um estudo publicado neste mês pela revista AMA revela que 93% dos 1,3 mil médicos entrevistados declaram se sentirem em vantagem ao usar novas tecnologias em relação aos que não as empregam. As vantagens são evidentes.
Para além do desafio de fazer com que os avanços cheguem aos pacientes, especialmente os mais vulneráveis e que mais precisam de atendimento em saúde, cabe a nós, profissionais, universidades, hospitais e rede de atendimento, pensar nessa nova cultura. A digitalização da saúde precisa evoluir. E talvez a medida mais eficaz seja ensinar, desde cedo, nos cursos de Medicina, como essas tecnologias disruptivas nos oferecem possibilidades para um atendimento mais humano e tratamentos mais precisos e assertivos. Esclarecer, desde os primeiros passos no cuidado de pacientes, que não existe o duelo “médicos x máquinas”, e sim a dupla “médicos e máquinas”, que compõe o melhor, mais seguro e mais eficaz modelo de saúde.
Francisco Madalosso de Bittencourt é médico e professor do curso de Medicina da UPF