Conta a história que Kofi Annan, diplomata africano nascido em Gana, que foi Secretário Geral da ONU entre 1997 e 2006 e ganhou o prêmio Nobel da Paz em 2001, era particularmente preparado para situações de crise e risco, envolvendo vidas, História, futuro. A sua esposa comentou em uma entrevista que chegava a ficar desesperada como o marido, quanto mais grave e impossível fosse a situação, mais tranquilo e distanciado ele ficava. Quanto maior a tensão, mais tranquila ficava a sua voz, mais pausadas as suas palavras, como se quisesse contaminar a todos com sua serenidade.
Há muitos anos atrás eu li um livro de Semiótica do italiano Humberto Eco. Numa palestra que ele seu em um Congresso de Imunologia, perguntaram para ele se as células de defesa, os Linfócitos, teriam ou não uma inteligência em sua resposta. Nunca esqueci da sua explicação: a questão é muito interessante. Se, diante de um estímulo, no caso do Linfócito, uma agressão de um invasor – Se a célula do corpo tiver a reação A, ou a reação B como possibilidade e estiver num Espaço C, onde ela pode “escolher” entre A e B, então ela é inteligente. A Inteligência deriva da capacidade de escolher o que e como fazer.
Essa resposta do intelectual italiano me veio à cabeça durante a epidemia de Coronavírus, quando o que realmente determinava a gravidade não era a proliferação do vírus, apenas, mas a capacidade do Sistema Imune regular a força de sua resposta. Os pacientes cujo organismo explodia numa tempestade de Citocinas, substâncias pró inflamatórias que induziam um ataque generalizado, morriam por conta da inflamação dos pequenos vasos em todos os órgãos do organismo. Apareciam as lesões em pulmões e rins, mas não havia nenhum lugar, nenhum órgão que não fosse afetado pela tempestade inflamatória. Era como explodir a casa para protegê-la do ataque dos ladrões. Eu diria para Umberto Eco que as células perdiam a sua capacidade não de decisão, mas de regulação de resposta, com consequências muito graves e fatais para muita gente. Infelizmente. A doença retirava das células seu Espaço C.
Quando eu explico a meus pacientes a regulação da resposta ao estresse eu pego muitas vezes emprestado o conceito de Umberto Eco: a capacidade de reagir de maneira equilibrada ou explosiva depende imensamente do Espaço C que alguém tenha, ou não tenha. O Secretário da ONU Kofi Annan, depois de décadas de trabalho em situação de estresse e pressão, desenvolveu esse Espaço C imenso, que lhe permitia quase o efeito da dilatação do tempo, para olhar de longe as opções, procurar saídas, visualizar a melhor alternativa, longe da tempestade de Medo que vem das áreas profundas do Subcórtex. Aposto que sentia muito, muito medo, mas usava o seu medo para ampliar seu Espaço C, chegando a irritar os desesperados à sua volta.
Nossa reação instintiva, diante da ameaça, é reagir de pronto. Revidar. Fugir. Atacar. Congelar. É preciso muito treino para criar e ampliar um espaço interno de avaliação e decisão de como e quando reagir. E como proteger ao máximo quem não pode se proteger os ataques, dos perigos.
No decorrer dessas décadas de Psiquiatria, fui testemunhando a evolução dos protocolos, dos algoritmos decisórios, dos critérios para tomar a melhor decisão e minimizar os riscos para os pacientes e seus entes queridos. Tudo isso vem no sentido de dar subsídios aos profissionais envolvidos. Em eras do Big Data, vamos ter cada vez mais os dados à mão para tomada de decisão: vamos pelo caminho A, pelo caminho B, vamos esperar, o que fazer?
Em Medicina, como na vida, as escolhas não se determinam pelas zonas em preto e branco. As decisões ficam muito em territórios mais ou menos cinzentos, em que o erro pode causar muito estrago. Nunca me ensinaram a treinar, refinar, afiar a capacidade de tomar distância e, no espaço C dos grandes líderes, olhar as peças no tabuleiro para tomar as decisões. Fui, como muita gente, a criar um Espaço C no peito e na raça. Isso faz diferença na hora do aperto. Na hora cinzenta.
Os dados são muito importantes, sim, mas olhar só os números pode deixar o líder sem a visão do todo. E sem Espaço C.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”