Artigo – Tuberculose: de ‘glamourizada’ a problema de políticas públicas

Acredite se quiser: em meados do século XVIII, a sociedade “romantizava” a tuberculose, doença infecciosa de alta letalidade que atinge pulmões, gânglios, rins, ossos, intestinos e meninges, causando febre (mais frequentemente ao entardecer), suores noturnos, falta de apetite, emagrecimento, cansaço fácil e, principalmente, tosse, podendo ser a causadora de graves infecções. Na época, dizia-se ser uma patologia de “poetas e intelectuais”, tendo sido idealizada em obras literárias e artísticas.

Hoje, mais de 150 anos depois, com a evolução da ciência e do conhecimento, o cenário se inverteu: embora já seja evitável e curável, a patologia não figura mais entre os principais problemas de saúde do “primeiro mundo”, onde se alastrava radicalmente, principalmente, na Europa. Agora ela se encontra em países menos abastados, onde imperam a precariedade de higiene e a falta de condições mínimas de moradia. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), das 30 nações que concentram 90% dos casos no planeta, 17 ficam na África, 11 na Ásia, um na Oceania e, para o nosso profundo lamento, o Brasil é o único representante das três Américas.

De acordo com a entidade, um terço da população mundial é portadora do Mycobacterium tuberculosis e corre risco de desenvolver a doença. Há cerca de 8,8 milhões de doentes e são registradas 1,1 milhão de mortes por ano. O Brasil ocupa o 17º lugar da lista, com 4,7 mil óbitos anualmente pela enfermidade.

Hipócrates, físico grego do século V a.C. e conhecido como o “Pai da Medicina Ocidental”, era, claro, um estudioso da área. E foi ele quem observou a extensa disseminação da tuberculose, também chamada de “peste branca” ou “doença do peito”. Dizia ser uma das mais fatais da época e estima-se que a evolução da micobactéria já dure entre 15 e 20 mil anos. No Egito, por exemplo, há evidências encontradas em múmias de mais de 4 mil anos.

Foi apenas em 24 de março 1882 (daí, 100 anos depois, a instituição do Dia Mundial de Combate à Tuberculose pela OMS) que o médico Robert Koch anunciou a descoberta do agente causador da infecção. A Mycobacterium tuberculosis, inclusive, passou a ser conhecida como “bacilo de Koch”.

A revelação foi um marco fundamental para conhecimento e impulsionamento de várias tentativas de controle e tratamento. Em fins do século XIX, passou a ser qualificada como um “mal social” e relacionada às condições precárias de vida, em que estão presentes inúmeros fatores, entre eles: moradias pouco ventiladas e pequenas para o número de moradores, a má qualidade de alimentação e a falta de higiene.

Naquele tempo, o tratamento higienodietético prevalecia como terapêutica. Acreditava-se que a cura acontecia quando se dispunha de boa alimentação, repouso e podia-se viver no clima das montanhas, este último considerado um fator fundamental no tratamento, que envolvia o isolamento dos pacientes em sanatórios e preventórios.

Já no século XX, a década de 30 foi marcada por avanços científicos que questionaram o “fator clima” na cura e a hereditariedade na etiologia da doença.

Até os anos 50, além da vacinação preventiva e dos sanatórios, outra possibilidade de tratamento era por meio de intervenção cirúrgica, que incluía a técnica do pneumotórax: usual e pouco benéfica, que consistia em provocar colapso no pulmão infectado para deixá-lo descansar e, assim, permitir a cicatrização das lesões. Tal procedimento extinto após 1944, em virtude do desenvolvimento da estreptomicina, antibiótico que possibilitou o tratamento apropriado.

A descoberta da medicação promoveu uma queda acentuada dos índices de mortalidade; e a comprovação da eficácia, ao longo das décadas de 1950 e 1960, fez com que o acolhimento se tornasse primordialmente ambulatorial, que em sua maioria incluía a internação do paciente. Como consequência, nas décadas seguintes os sanatórios foram paulatinamente desativados.

A minoria dos acometidos no mundo são crianças: 11%; os 89% de adultos são distribuídos em 56% para homens e 33% para mulheres. É preciso salientar, porém, que, na maioria das vezes, o próprio organismo produz mecanismos de defesa e a pessoa não adoece. Outras vezes, mesmo que o organismo resista, o agente fica “guardado”, manifestando-se em indivíduos enfraquecidos ou com comprometimento do sistema imunológico por idade avançada, alcoolismo, tabagismo, aids, diabetes, desnutrição, infecção, câncer e outras doenças.

O contato com o microrganismo se dá, primordialmente, quando um doente tosse, fala ou espirra, espalhando, no ar, gotículas que penetram no organismo pela respiração. Cada paciente com tuberculose pulmonar não tratada pode infectar, em média, de 10 a 15 pessoas por ano. Quem tem TB em outras partes do corpo não transmite a doença, pois não elimina os bacilos de Koch pela tosse, bem como aqueles em terapêutica, pois, a partir de 15 dias do início do tratamento (normalmente com regime de seis meses com medicamentos que contêm rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol), o risco de contágio vai diminuindo. Cerca de 85% das pessoas que desenvolvem a doença podem ser tratadas com sucesso.

Tuberculose e Covid-19

A pandemia do novo Coronavírus reverteu anos de progresso global no combate à tuberculose e, pela primeira vez em mais de uma década, as fatalidades pela doença aumentaram, de acordo com o relatório global da OMS de 2021. Em 2020, quando comparado ao ano anterior, mais pessoas morreram e menos foram diagnosticadas, prevenidas ou tratadas. Os gastos gerais com serviços essenciais e, em muitos países, recursos humanos, financeiros e outros foram realocados para a resposta à Covid-19.

A estratégia da OMS para pôr fim à tuberculose visa uma redução de 90% nas mortes e uma redução de 80% na taxa de incidência até 2030, em comparação com a linha de base de 2015.

Mais do que receber recursos oriundos apenas das reservas à saúde pública e procurar a proteção individual por meio da vacinação com BCG e a prevenção com fármacos, é preciso que a população seja olhada com muito mais carinho pelas autoridades, tanto nacional como globalmente. Está nas mãos deles a resolução dos problemas de habitação e higiene. Só no Brasil, segundo dados da 14ª edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, aproximadamente 35 milhões de pessoas vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Já uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que 45 milhões de pessoas vivem em situação de precariedade.

Assim como outras, não é apenas uma doença: é uma anomalia sociopolítica mundial. A urgência se faz não apenas pelo escopo da saúde, mas pela dignidade da pessoa humana, já que a tuberculose passa muito longe de ter o errôneo glamour de dois séculos atrás. É um problema sério e precisa ser tratado como tal.

 

 

 

 

Vera Rufeisen é infectologista do Vera Cruz Hospital, de Campinas (SP)

Redação

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