Médica expõe, como profissional de saúde e paciente, a situação da pandemia do Coronavírus no Brasil

O Instituto Melhores Dias busca, de diversas formas, conscientizar e trazer informações sobre a pandemia do Coronavírus no Brasil. Para tanto, realizou uma entrevista com a médica Rafaela Capelli, que revela de forma corajosa e verdadeira um panorama real de como os hospitais enfrentam a pandemia e de como um paciente encara a doença. Ela traz informações ricas sobre este período e desconstrói a imagem distante, sem rostos, apenas de números e estatísticas, que acompanha a doença que assola o país.

A Dra. Rafaela Capelli, é jovem, está perto de completar 30 anos de idade, mas já enfrentou enormes desafios na vida e na carreira. Ela é cirurgiã geral, trabalha em um hospital de trauma na periferia do Rio de Janeiro, o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, e integra uma equipe de cirurgia hepatobiliar e transplante hepático, em diversos hospitais privados no Rio. Experiente, se especializou no Hospital Paul Brousse, na França, em 2018.

O último grande teste profissional e pessoal que se apresentou para a Dra. Rafaela foi a pandemia do Coronavírus, acompanhada da infecção confirmada de Covid-19, que a colocou em quarentena.

Leia a entrevista:

IMD – Você estava trabalhando no combate ao Coronavírus, mesmo não sendo a sua área de atuação?

DRA. RAFAELA – A chegada da pandemia foi misteriosa. Todos estávamos acompanhando as notícias mundiais, eu mesma estava de férias no mês de março apenas assistindo tudo o que ocorria. Começamos a receber bombardeios de informações vindas de todas as partes, compartilhamento de manuais, vídeos, “guidelines” (diretrizes), fluxogramas a seguir, aulas. Tudo compartilhado de forma informal.

Ao mesmo tempo, a cada plantão, percebíamos mudanças estruturais no hospital, o levantamento de um hospital de campanha em frente ao nosso, e o início de obras dentro do próprio hospital. Apesar de tudo isso, a área clínica destinada ao recebimento desses pacientes estava sempre cheia e confusa. Pacientes aglomerados, pouco espaço para isolar os que deveriam, sem espaço para fazer os procedimentos de forma adequada e, muitas vezes, colocando outros pacientes próximos por não ter como separa-los da forma adequada.

Em poucos dias, a equipe cirúrgica passou a fazer parte da escala oficial de atendimento junto aos clínicos, e em seguida já começaram os relatos de falta de circuitos de ventiladores mecânicos para todos, falta de saídas de oxigênio para vários pacientes que necessitavam.

Os treinamentos sobre paramentação, sobre o manejo do paciente em unidade intensiva, foi uma busca que partiu de cada um. Não houve treinamentos formais.

IMD – Havia equipamento de proteção à disposição para toda a equipe do hospital ou os profissionais de saúde colegas foram pegos de surpresa?

DRA. RAFAELA – Não havia para todos de forma completa. Os cirurgiões buscaram com recursos próprios comprar a máscara “faceshield”, o número de máscaras N95 era muito limitado, as máscaras cirúrgicas e capotes não tinham a qualidade necessária, com filtro e gramatura adequados. A classe médica ainda foi privilegiada com mais material que os enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos, maqueiros e equipe da limpeza.

IMD – Você sentiu os sintomas e foi afastada ou fez um teste que identificou que estava positiva para o vírus?

DRA. RAFAELA – Na manhã seguinte a um plantão noturno, cheguei em casa me sentindo exausta. Acreditei que fosse cansaço do trabalho, mas então comecei a ter febre e o cansaço não passava. Conversei com meu chefe, que me liberou do próximo plantão (que seria em três dias) e que pediu para que eu testasse, caso negativo eu deveria retornar na outra semana.

Consegui o teste por meios próprios para confirmar, demorou cinco dias para colher e mais três para sair o resultado. Então fiquei oficialmente 14 dias afastada e isolada.

IMD – Como acredita que foi contaminada?

DRA. RAFAELA – Não sei exatamente, mas penso muito em um procedimento que fiz em uma paciente “suspeita de covid” em que tive que drenar o tórax (tirar água do pulmão), em uma sala sem a saída de ar adequada, com corredor próximo com outros pacientes.

IMD – Muitos colegas seus foram contaminados também?

DRA. RAFAELA – Sim, atualmente acredito que 20 colegas estão ou estiveram doentes. Um deles está internado hoje.

IMD – Os sintomas que você sentiu, são os sintomas comuns?

DRA. RAFAELA – Senti muito cansaço, exaustão profunda, dor de cabeça e no corpo, dificuldade em respirar fundo, febre baixa e perda do olfato e do paladar. São sintomas comuns, sim. Tosse também é comum, mas eu não tive. E muitos, como eu, relatam a perda do olfato e paladar.

IMD – A Covid-19 se manifestou de forma leve, média ou forte em você?

DRA. RAFAELA – Acredito que dentro do contexto geral da doença foi leve. Mas para mim, foi muito longe de ser “uma gripezinha”, mesmo com “meu histórico de atleta”, pois faço muitos exercícios e estou em forma. Fiquei de cama, sem conseguir cozinhar, apenas dormindo e contando com a ajuda da família para trazer comida.

IMD – Como foi o processo de enfrentamento da doença em casa? Você conseguiu se virar sozinha?

DRA. RAFAELA – Eu tive ajuda dos amigos e família que trouxeram documentos que tinha urgência em apresentar nesse período e tudo que fosse necessário. A minha amiga, que divide apartamento comigo e também é medica, optou por se hospedar em outro lugar durante duas semanas para não correr risco de se contaminar também. Usei apenas Dipirona, e mantive uma alimentação equilibrada, tomando muita água. Não fiz uso de cloroquina nem de nenhum outro medicamento para me recuperar.

IMD – Como você imagina que as pessoas, que têm menos informações médicas que você, lidam com a doença?

DRA. RAFAELA – Acredito ser complicado. Mesmo tendo acesso a tanta informação, na hora que de fato aconteceu comigo, há uma sensação de não saber exatamente o que fazer. São muitas as questões que surgem: O isolamento é da casa inteira? Mas como a outra pessoa que não está doente também vai parar de trabalhar (no caso outra médica)? Como os hospitais vão suprir tantos profissionais sendo afastados um atrás do outro? Existe um grande medo em relação a doença, que é muito imprevisível, então há uma preocupação e certo pânico geral entre os familiares, associada a impotência, porque, doente, você precisa ficar totalmente sozinho. Mas acredito que dentro da doença, eu vivi o melhor cenário. Podendo me isolar, tendo auxílio e apoio de todos, e podendo respeitar a quarentena com todo suporte necessário. Meu receio é com as pessoas que precisam lidar com a doença e não possuem essa estrutura. Já tive que orientar famílias a isolar um familiar, mas eram 8 pessoas morando em 2 cômodos! É difícil montar uma logística, é difícil orientar algo que está fora da realidade prática.

IMD – Você se recuperou completamente?

DRA. RAFAELA – Sim! Completei meu 14º dia de isolamento e já me sinto disposta e saudável.

IMD – Quando você volta ao trabalho?

DRA. RAFAELA – No próximo domingo!

IMD – Sente-se mais segura agora que venceu a doença?

DRA. RAFAELA – Sim! Apesar de alguns relatos de reinfecção, devido ao pouco tempo de recuo de tempo em relação a doença, sinto que “ganhei do corona” e passou um pouco do imaginário do que é estar contaminada com ele. De toda forma, as medidas de proteção se mantêm para atendimentos e procedimentos de todos os pacientes.

IMD – No retorno, como imagina encontrar o cenário no hospital? Diferente de quando entrou em quarentena?

DRA. RAFAELA – Muito diferente. Mesmo afastada converso sempre com todos colegas e acompanho os grupos do trabalho. Os relatos são de plantões exaustivos, com lotação máxima, todos trabalhando sem parar, muitos frustrados porque não conseguem resolver, não há fluxo ou organização adequada.

IMD – Você acha que a pandemia está sendo corretamente enfrentada no Brasil?

DRA. RAFAELA – Acredito que o isolamento inicial foi uma medida acertada para ganhar tempo em construir hospitais de campanha e organizar as equipes de saúde para o segundo momento. A partir de então, já não consigo entender a não evolução das coisas. Os hospitais de campanha ainda não foram liberados, a escassez de testes diagnósticos dificulta muito “encontrar o inimigo”, os profissionais de saúde não possuem nenhuma segurança, caso venham adoecer ou a óbito, nem mesmo um auxílio para se afastar do restante da família para protegê-la.

Além do isolamento horizontal inicial, faltaram os próximos passos: capacitação das equipes, abertura dos hospitais de campanha, acertar fluxos internos e de transporte de pacientes com COVID e planos de auxílio financeiro e psicológico aos profissionais afetados.

IMD – Qual a estratégia para que os profissionais de saúde não fiquem saturados?

DRA. RAFAELA – Cargas horárias de plantões mais curtas, intervaladas contribuem. Profissionais treinados e com equipes completas, que contam com fisioterapeuta também ajuda e há divisão de responsabilidades e melhor manejo do paciente.

IMD – Qual a evolução que você acredita que a doença pode ter nas próximas semanas?

DRA. RAFAELA – A chegada da doença nas comunidades e periferias (que já aconteceu) vai gerar a evolução da doença em progressão geométrica. Sem acesso a saneamento básico adequado, sem capacidade física de isolamento, o vírus que é altamente contagioso e está se espalhando rápido. Os hospitais (que sempre foram cheios) já dão indícios de estarem ainda mais cheios. A sensação é que ainda vai piorar.

IMD – Quando devemos iniciar o processo de retorno gradual às atividades profissionais e econômicas?

DRA. RAFAELA – A saída verdadeira para essa doença será a vacina ou um medicamento que realmente cure e não há previsão que isso aconteça. Os países europeus se preparam para uma reabertura gradual, porém já se contando com o 2º pico da doença. Outra saída é a testagem em massa e compulsória da população de forma a rapidamente encontrar focos da infecção e conseguir isolar pontualmente, o que me parece ser uma realidade distante, mas tudo é possível.

IMD – Quais dicas você tem para as pessoas que estão em casa, vendo a pandemia pela televisão e muitas vezes, acompanhando os casos de contaminação e morte como números?

DRA. RAFAELA – Sabemos o que está acontecendo, estamos impotentes diante do todo. Deve-se usar canais confiáveis para buscar informações eventualmente; mas acompanhar em tempo real, gera angustia, medo e não vai mudar em nada o que cenário que vivemos.

IMD – Qual mensagem você tem depois de passar por esta experiência?

DRA. RAFAELA – A pandemia nos deu oportunidade de reavaliar prioridades. Ao reorganizar a sociedade, buscamos entender quais são os setores essenciais, lembramos dos profissionais de saúde como provedores de cuidado, percebemos quais coisas de fato precisamos ter ou comprar e onde estão nossos pilares quando nos sentimos fragilizados e impotentes. Minha experiência pessoal, de sentir a fragilidade, lembrar da morte (mesmo que no meu caso tenha sido muito distante) gerou reorganização interna. Vivenciar a pandemia no SUS é também marcante, o excesso de atendimentos e a falta de estrutura para atender todos dói e deixa muita gente abaixo da linha da dignidade. Precisamos, de fato, nos olharmos como iguais e buscar formas coletivas de sairmos disso mais próximos e com cuidado com o que nos é essencial. Como nosso ar, água e terra. Parece clichê e obvio, mas na prática, não é.

O ser humano passou a ter certeza que é a coisa mais importante que existe dentro do planeta, do sistema solar e da galáxia nos últimos tempos, a tecnologia então, foi a certeza absoluta de dominação do resto. O que estamos vivenciando nos coloca no nosso lugar e nos faz entender nosso papel como mais um componente do sistema e não o melhor e único invencível elemento.

Reconhecer nossa fragilidade é uma oportunidade para sermos mais preocupados com o todo, para entendermos que tudo funciona em coletivo, que não existe as fronteiras inventadas entre os países, menos ainda entre espécies de animais e com a natureza. Acredito que esteja sendo desenhada, na nossa frente, numa grande dinâmica mundial que revela que a forma como estamos levando nossa existência não é sustentável nem traz felicidade. Que seja, de fato, um “reset” para lembrarmos o que realmente importa dentro e fora de nós.

Redação

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