Solicitado a contribuir neste espaço editorial, foi inevitável recuperar uma memória de mais de uma década. Lá pelo ano de 2006, em um evento coordenado pela professora Cristina Amorin, argumentei sobre a necessidade, inadiável na época, de se definir qual seria a identidade do setor Saúde no Brasil: se de benefício social financiado pelo estado ou de negócio privado regulamentado. Bom lembrar que, naquela época, eu ainda residia nos Estados Unidos e vivia o cotidiano da Saúde como negócio. Passados 11 anos, evoluímos para uma mistura bem balanceada dos dois modelos, ainda que, em alguns aspectos, os limites de um se sobrepusessem aos do outro. Contudo, esta evolução mostra que o segmento soube se auto-organizar sob o ponto de vista institucional. No entanto, foi impossível evitar alguns tropeços ao longo desse caminho. São eles que servem agora de inspiração e alerta para uma análise do que vem pela frente.
Se no passado era indispensável a definição da identidade do setor, hoje é fundamental o conhecimento detalhado de três pilares que sustentam o edifício da Saúde no mundo: pessoas, tecnologia e financiamento. No pilar das pessoas, se incluem os profissionais de saúde e os usuários do sistema – para os quais o título “paciente” é, hoje, pouco aplicável. Já no pilar da tecnologia, estão inclusos os novos modelos de produção do conhecimento pela ciência e sua difusão, produzidos para quem deles possa fazer uso. E, por fim, no pilar do financiamento está incluída a precificação, que define a relação entre provedores e prestadores de serviço. É a análise destes três pilares que poderá contribuir para a resposta parcial da pergunta que intitula este conteúdo: “para onde vai, saúde?”. De cara, emerge a percepção que os três pilares têm fortes conexões e reverberações entre si.
A inclusão de profissionais na cadeia de valor da prestação de serviços de saúde é uma tarefa cada vez mais difícil, tanto na camada de alta quanto na de baixa complexidade – a atenção primária. Há escassez de quantidade e qualidade, agravada por outro aspecto típico deste mundo de “conhecimento ao alcance da mão”: o acesso à informação está mais fácil, mas não é mais possível absorvê-la sem a ajuda de sistemas que facilitem o gerenciamento do que é produzido, para separar o que interessa mais a um do que a outro profissional. Em resumo, na qualidade falta curadoria. E na quantidade falta gente mesmo. Tentar suprir falta de gente com manobras de importação de cérebros supostamente qualificados em países exóticos não se revelou uma boa alternativa e escreveu um capítulo cinzento na história recente da atenção primária no país.
Ainda falando de pessoas, como anda o conhecimento médico? A melhor palavra para descrever a sua produção pode vir da própria medicina: ela é hemorrágica! Várias medições fazem estimativas um tanto questionáveis da produção de novos conhecimentos, mas uma coisa é comum a todas estas medições: é cada vez mais difícil atribuir critérios de relevância e confiança ao que se produz. No meio desta hemorragia de conteúdo, surge a Inteligência Artificial – IA, muitas vezes interpretada como uma panaceia dos deuses. Sobre este assunto, digo apenas que as expectativas em relação à IA devam ser elaboradas com a mesma cautela com que se usa uma nova medicação e avaliadas através de medições comparativas de resultados, como quem avalia a eficácia de uma nova técnica cirúrgica. Estamos falando de mais uma ferramenta que pode auxiliar médicos em tomadas de decisão.
Outra análise para o acolhimento de novas tecnologias tem a ver com a falsa redefinição do conceito de “estar bem” na vigência de uma enfermidade. Refiro-me ao uso de tecnologias que criam um quadro otimista sobre uma condição terminal, principalmente baseado em promessas da fármaco-genética. Este quadro pode evoluir para uma situação a que tenho chamado de “morrer com saúde”: o resultado dos exames é animador, mas o paciente ainda está em fase terminal, oras.
Finalmente, o financiamento. É aqui que surge a possibilidade mais promissora baseada em uma novidade tecnológica: o acompanhamento da composição de custos dos serviços em seus mínimos detalhes, monitorando todos os componentes de subserviços e produtos, por meio da construção de uma cadeia indevassável de blocos de informações que cresce na medida em que estes serviços vão sendo prestados. O nome charmoso para este processo é “blockchain”. Certamente, se você está lendo este artigo, já ouviu este nome, criado em 2008 por Satoshi Nakamoto, um profissional com uma aura mística tão grande quanto a sua competência profissional. De um lado, estão os que temem a divulgação da composição de custos de seus bens e serviços, porque esta revelação pode mostrar margens de lucro assustadoras. De outro lado estão negócios que carecem de um processo transparente e confiável para captura eficaz dos seus custos, de modo a permitir a construção de um preço justo e razoável. Felizmente, a área de saúde se encaixa nesta segunda categoria. E talvez daí surja a mágica da precificação adequada, que cause em todo o planeta uma epidemia de saúde a custos razoáveis. Estaremos salvos!
Fabio Gandour é cientista-chefe da IBM Brasil, é graduado em Medicina pela Universidade de Brasília e PhD em Ciências da Computação
Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 88, de novembro/dezembro de 2017. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-88-revista-hospitais-brasil