A ciência e a medicina vêm avançando a passos largos. Uma boa prova disso foi o desenvolvimento em tempo recorde da vacina contra a Covid-19, altamente eficaz e segura. Porém, mesmo com as melhorias, algumas doenças não regridem com medicamentos e tecnologias atuais. Em muitos casos, pacientes que têm doenças potencialmente fatais experienciam na trajetória da doença uma mudança gradual de foco do objetivo do tratamento que passa a ser concentrado em medidas que promovem qualidade de vida através da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce de situações possíveis de serem tratadas, da avaliação cuidadosa e minuciosa e do tratamento da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. Essa é a definição de Cuidados Paliativos do Instituto Nacional do Câncer (INCA).
Mas receber o diagnóstico não é fácil. Embora a morte seja uma realidade que todos sabemos que vamos enfrentar, pouco se fala sobre esse momento, que pode chegar subitamente, mas também de forma mais consciente, como em casos de doenças em estágios avançados, quando a condição passa a ser classificada como crônica, uma situação comum a casos de câncer que não respondem por completo às opções terapêuticas atuais disponíveis, por exemplo. Por isso, o tratamento paliativo deve ser iniciado, o mais precocemente possível, assim que seja diagnosticada uma doença que ameaça a vida e acompanhar os tratamentos direcionados para a doença. Assim, evita-se o sofrimento desnecessário e cuidam-se também dos aspectos psicológicos, sociais e espirituais que envolvem a trajetória de quem sofre de doenças graves.
“Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os cuidados paliativos aplicam-se já ao início do curso da doença, em conjunto com outros tratamentos destinados a aumentar a sobrevida, como quimioterapia ou radioterapia, e incluem aqueles exames necessários à melhor compreensão e controle das complicações clínicas angustiantes. As transições na linha de cuidado são um processo contínuo e sua dinâmica difere para cada paciente”, diz Sarah Ananda Gomes, Líder da Especialidade Cuidados Paliativos do Grupo Oncoclínicas.
A OMS estima que todos os anos mais de 40 milhões de pessoas necessitarão de cuidados paliativos em algum momento da vida e, diante deste cenário, os países classificados como de Primeiro Mundo, como Inglaterra, Estados Unidos e Canadá, são tidos como referências. Já o Brasil ainda precisa se fortalecer nesta questão, tendo ficado em 42º lugar entre as 80 regiões que tiveram indicadores quantitativos e qualitativos dessa linha de cuidados avaliados por um estudo publicado pelo The Economist em 2015.
Vale, todavia, considerar que na última década muito tem sido feito por aqui e o número de instituições que têm investido na área aumenta a cada ano. Isso porque, com o envelhecimento da população, doenças degenerativas e sem cura também vêm crescendo na população. Neste contexto, o Câncer exerce papel de protagonista no desenvolvimento da área, dado que a origem do conceito de cuidados paliativos está relacionada ao atendimento de pacientes diagnosticados com algum tipo de tumor maligno.
Dados do Atlas de Cuidados Paliativos 2019, o mais recente publicado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), aponta que dos 191 serviços de Cuidados Paliativos existentes no país, 178 forneceram informações sobre atendimento a pessoas com câncer. Desses, 81 (45,5%) têm 70% ou mais de pacientes oncológicos, sendo que 38 atendem via SUS (47%), 26 são focados em atendimento particular (32%) e 17 (21%) são mistos – público e privado. Por isso mesmo, são os especialistas da área oncológica que têm mostrado cada vez mais avanços nas técnicas e programas.
“Em geral, as pessoas não querem falar sobre sua finitude. A doença, o envelhecimento e a morte não são acidentes de percurso, são características inerentes da nossa condição de seres humanos. Mas é muito importante frisar que os cuidados paliativos não são apenas para a fase final de vida, são essenciais desde o início, no processo e, principalmente, focam na qualidade de vida da pessoa, até o final. Essa área, inclusive, vem quebrando paradigmas da medicina e nos últimos anos cresce o número de publicações que demonstram que quando iniciados precocemente, além da melhoria da qualidade de vida e redução de depressão, o acompanhamento conjunto com o cuidado paliativo pode contribuir com o aumento também da sobrevida desses pacientes”, afirma Sarah.
A médica esclarece que alguns outros pilares dessa abordagem se baseiam na importância de sempre respeitar a autonomia do indivíduo, seus valores e prioridades e também no papel essencial do trabalho em equipe transdisciplinar para alcançar a redução do sofrimento e dor, que beneficiam todos envolvidos.
O investimento em amenizar a evolução de tumores tem efeito prático na Oncologia em geral, além dos cuidados paliativos. Novas drogas, tratamentos inovadores pautados pela análise de diagnósticos cada vez mais avançados e pesquisas científicas constantes contribuem amplamente para que um leque cada vez maior de tumores sejam combatidos com eficácia, fazendo com que um número expressivo de pacientes oncológicos vivam – e bem – com a doença.
“Quando falamos em cuidado paliativo, o que de imediato vem à mente é a ideia de que o paciente está morrendo e, portanto, não há nada mais a ser feito, o que gera um preconceito na busca por esse tipo de tratamento. Mas isso não é real, precisamos desmistificar esse conceito: no cuidado paliativo há sempre muito a ser feito em prol do bem estar e da qualidade de vida, o objetivo é traçar as melhores estratégias para assegurar a ele a melhor linha de cuidado integral e individualizado para que ele viva e conviva com a doença com plenitude e dignidade”, complementa Sarah.
E qual a importância dos cuidados paliativos na fase de terminalidade?
Outro princípio importante dos Cuidados Paliativos é “Afirmar a vida e considerar a morte como um processo normal da vida.” O Cuidado Paliativo enxerga a possibilidade da morte como um evento natural e esperado na presença de doença ameaçadora da vida, colocando ênfase na vida que ainda pode ser vivida, assim outro principio: “Não acelerar nem adiar a morte”, o que enfatiza que Cuidado Paliativo nada tem a ver com eutanásia, como muitos se confundem. Preconiza-se a ortotanásia ou seja a morte natural, no tempo certo, com dignidade.
“Infelizmente, muitos acabam por prolongar o processo do morrer sem qualquer qualidade de vida, com internações e procedimentos invasivos que aumentam o sofrimento do paciente e pessoas próximas. Mas não precisa ser assim, é possível, por meio da prática da medicina paliativa, oferecer a qualidade nesse processo de transição com apoio de uma equipe multidisciplinar formada por enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais e outros profissionais que atuam lado a lado com o médico responsável para que seja possível lidar da melhor maneira com a intercorrências e, acima de tudo, dar ao paciente a oportunidade de ser o protagonista da sua própria história”, explica a médica paliativista do Grupo Oncoclínicas.
Por isso, os benefícios para o paciente e sua família são inúmeros, inclusive também nessa fase final, segundo Sarah. Justamente quando as perspectivas de cura são restritas que muito se pode continuar fazendo em termos de cuidado, criando um verdadeiro ambiente de acolhimento, onde o papel principal deixa de ser a doença e passa a ser o doente. O paciente pode participar do processo de condução ativamente, planejando desde questões burocráticas que envolvem o fim da vida até a despedida de familiares e a resolução de pendências. Para os familiares, é uma chance de encarar o momento, de poder se despedir e apoiar o seu parente, ajudando na condução dos processos.
“Essa capacidade de trazer e transformar o significado para cada momento da vida até o último segundo, respeitando sempre o sagrado individual de cada um, para mim é muito forte e uma das coisas que mais me encanta nessa especialidade”, finaliza Sarah Ananda Gomes.
São considerados quatro pilares do cuidado paliativo
Controle de sintomas: evitar desconfortos físicos, emocionais, espirituais e sociais estão entre os pontos centrais quando se trata de cuidados paliativos. Lidar com a dor em seus diferentes aspectos e prevenir desconfortos possíveis são prioridade. A chave está em assegurar o máximo de qualidade de vida.
Abordagem multidisciplinar: essa frente de atuação deve ser iniciada o mais precocemente possível, juntamente com outras medidas de prolongamento da vida, como o tratamento com quimioterapia, radioterapia ou outras terapias de controle do câncer. A integração de diferentes disciplinas contribui para o acompanhamento mais individualizado e humanizado do paciente. Isso leva em conta, além das questões clínicas de cada um, os aspectos psicológicos e espirituais na forma de cuidado ao paciente, incluindo todas as investigações necessárias para melhor compreender e controlar situações que impactam diretamente e indiretamente.
Comunicação: é preciso respeitar as escolhas de pacientes e família. O debate sobre as melhores alternativas de tratamento devem ser conversadas e compartilhadas, para que não seja implementada ou retirada nenhuma linha terapêutica sem que haja uma decisão conjunta com a equipe de saúde responsável. Além da comunicação com o paciente e seus cuidadores, a comunicação adequada entre as equipes é fundamental para um plano de cuidados alinhado e centrado no paciente.
Apoiar a família: os profissionais envolvidos na linha de cuidado colaboram para que as tomadas de decisões aconteçam da melhor maneira, ajudam a mediar conversas, prevenir o estresse do cuidador, e a lidar com o sofrimento durante a trajetória e também no período de luto.