Somados, os hospitais públicos e privados do Brasil registraram, em 2017, seis mortes, a cada hora, decorrentes dos chamados “eventos adversos graves”, ocasionados por erros, falhas assistenciais ou processuais ou infecções, entre outros fatores. Desses, mais de quatro óbitos seriam evitáveis. Os números integram o 2° Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) e pelo Instituto de Pesquisa Feluma, da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Em virtude da adequação e aperfeiçoamento metodológico, os números da segunda edição não são comparáveis à anterior. Com base na metodologia, é possível afirmar que as estimativas apontadas no trabalho são “conservadoras”.
Os autores destacam que o Anuário tem o objetivo de mensurar os problemas assistenciais e gerenciais hoje vividos pelas estruturas de saúde do Brasil e, a partir daí, sugerir medidas de aperfeiçoamento do sistema. Entre os eventos adversos graves captados com mais frequência pelo Anuário estão septicemia (infecção generalizada), pneumonia, infecção do trato urinário, infecção do sítio cirúrgico, complicações com acessos, dispositivos vasculares e outros dispositivos invasivos, lesões por pressão, erro no uso de medicamentos e complicações cirúrgicas como hemorragia e laceração. Além disso, entre os principais eventos adversos graves, cinco não contam com qualquer programa de prevenção ou combate, tanto no SUS quanto na rede privada: parada cardiorrespiratória prevenível; insuficiência renal aguda; aspiração pulmonar; hemorragia pós-operatória; e, insuficiência respiratória aguda.
“Os eventos adversos são inerentes a qualquer serviço de saúde, mesmo nos melhores e mais sofisticados sistemas do mundo. Não se trata, portanto, de buscar culpados, mas, de propor medidas que enfrentem o problema. Por isso, propomos agenda focada em investimentos em processos e controles e em políticas públicas de qualidade assistencial e de segurança do paciente”, afirma Renato Couto, médico, professor da Pós-graduação da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, diretor do IAG Saúde e um dos responsáveis pelo Anuário.
O superintendente executivo do IESS, Luiz Augusto Carneiro, acrescenta a necessidade de se avançar em uma agenda de transparência do sistema de saúde, exatamente para que os usuários do sistema possam fazer as melhores escolhas. “No Brasil, temos proporcionalmente mais eventos adversos do que outros países e, mais grave, a falta de transparência de informações de qualidade e desempenho impede a comparação entre os prestadores, o que é ruim para o sistema e para o cidadão”, analisa. “Nosso objetivo está em avançar em uma agenda de transparência para colaborar para as escolhas de quem usa o sistema de saúde”, sustenta.
Considerando todo o sistema hospitalar do país, 54,76 mil mortes foram causadas pelos eventos adversos graves, sendo que 36,17 mil poderiam ter sido evitadas. A título de comparação, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública informou que, em 2017, o Brasil registrou 7 mortes violentas intencionais por hora. Portanto, as mortes nos hospitais brasileiros geradas por esses erros e falhas processuais estão em um patamar bastante próximo ao das mortes provocadas pela violência. Outro parâmetro comparativo, no caso, na área da saúde: o câncer mata de 480 a 520 brasileiros por dia, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). As doenças cardiovasculares são consideradas a principal causa de falecimento no Brasil e no mundo, ocasionando o óbito de 950 brasileiros por dia, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia.
“O fato de os hospitais analisados no estudo serem considerados ‘de primeira linha’ e apresentarem esses números indica que a média nacional projetada a partir da amostra estudada provavelmente está subestimando o problema. É possível que ainda mais brasileiros morram por eventos adversos do que o detectado”, pondera Carneiro.
Custo financeiro
As vidas perdidas, sem dúvida, são o principal motivo para combater os eventos adversos. Contudo, o Anuário projeta que esses eventos consumiram R$ 10,6 bilhões apenas do sistema privado de saúde. Não foi possível estimar as perdas para o SUS porque os valores pagos aos hospitais se originam das Autorizações de Internações Hospitalares (AIHs) e são fixados nas contratualizações, existindo outras fontes de receita não operacionais, com enorme variação em todo o Brasil.
O superintendente executivo do IESS aponta que um dos principais determinantes para esse desperdício é o modelo de remuneração de prestadores de serviço adotado no País, o fee-for-service. “Estamos premiando o desperdício”, resume. “No modelo fee-for-service, as organizações inseguras, com maior incidência de eventos adversos e que apresentam piores índices de recuperação da saúde dos pacientes, são recompensadas com um aumento das receitas pelo retrabalho”, analisa. “Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo não paga, desde 2008, pelos gastos gerados por 14 tipos de eventos adversos”, aponta Couto. “É natural que se os gastos partiram de um erro do hospital, a entidade arque com esses custos adicionais ao invés de transferi-los ao paciente que já está sentindo o problema da pior maneira possível, na própria saúde”, completa.
O Anuário aponta que uma das principais dificuldades estruturais para essa mudança está nas regras que regem o sistema de saúde suplementar. A norma definida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) restringe o descredenciamento de prestadores, exigindo substituição equivalente ou superior, inibindo a concorrência. Como não há indicadores de qualidade e transparência no setor, até mesmo esse critério pode ser aperfeiçoado a partir da publicidade dessas informações.
Custo em leitos-dia
Além das vidas perdidas por eventos adversos e dos pacientes que tiveram sua recuperação ou sua qualidade de vida afetada, esse problema ainda determina um elevado impacto em leitos-dia para o sistema de saúde brasileiro, uma vez que essas situações também impactam no tempo de recuperação dos pacientes. Impedindo que mais pacientes sejam atendidos.
De acordo com o estudo, cada evento adverso grave determina a extensão do período de internação em média em 14,4 dias (16,4 dias para pacientes no SUS e 10,5 dias para pacientes na rede privada).
Com isso, ao longo de 2017, foram consumidos 14,3 milhões de leitos-dia em função de eventos adversos. Sendo 4,7 milhões em razão de eventos adversos graves. “Considerando o período normal de internação para pacientes que não passaram por eventos adversos encontrados no estudo, de 6 dias para o SUS e 3,5 dias para a rede privada, conseguiríamos atender aproximadamente mais 7,7 milhões de pacientes (2,9 milhões relacionados a eventos adversos gerais e mais 4,7 milhões relacionados a eventos adversos graves) sem aumentar os gastos ou ampliar a rede”, destaca Couto.
O médico e pesquisador do Feluma alerta, ainda, que o Brasil contou com 165,9 milhões de leitos-dia em 2017, mas só utilizou 96,6 milhões. Uma ociosidade de 41,8%. “Está claro que precisamos repensar a distribuição da rede de saúde”, argumenta Couto. “O racional seria focarmos as internações em centros de excelência maiores, ao invés de distribuir leitos por todas as cidades. Isso contribuiria para a racionalidade do sistema, reduzindo custos e concentrando profissionais qualificados em ambientes com maior controle de processos. O que tende a reduzir também a ocorrência de eventos adversos”, explica.
Nota metodológica
O 2° Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil foi calculado com base em uma amostra de 456.396 pacientes internados em hospitais da rede pública e privada ao longo de 2017. Os dados foram coletados junto a instituições localizadas em municípios de grande porte e com IDH acima da média nacional. Com isso, é possível que os números nacionais sejam maiores do que os encontrados.