Em tempos de pandemias e catástrofes de saúde, pesquisadores e cientistas em geral são tomados pela ânsia de dar sua contribuição para o combate à doença em causa, cada qual lançando mão dos melhores meios em seu campo específico de conhecimento.
Nesse mar de boas intenções, surgem estudos científicos em grande número. Metodologias e enfoques podem ser bastante diferentes, levando, por vezes, a conclusões divergentes – ou, até mesmo, completamente opostas. Nada inesperado, pois a ciência tem essa natureza: a busca pelas respostas nem sempre oferece resultados imediatos, muito menos permanentes ou inquestionáveis.
A Covid-19, infecção pelo novo Coronavírus, tem maior risco de evolução grave ou letal, quando ocorre associada a diversas condições, já bem conhecidas: idade mais avançada, presença de doença cardíaca, diabetes, deficiências da imunidade e outras.
As perguntas pertinentes: o colesterol elevado pode também influenciar na gravidade da Covid-19? O tratamento da hipercolesterolemia pode modificar a evolução dos pacientes acometidos por esta infecção?
Analisando os pacientes do início da pandemia, em Wuhan, observou-se um fenômeno curioso: os níveis de colesterol total, HDL e LDL-colesterol, ficavam progressivamente mais baixos conforme aumentava a gravidade da doença, numa clara relação inversa (Wei X et col – Hypolipidemia is associated with the severity of COVID-19 – Journal of Clinical Lipidology (2020) 14, 297–304).
Por outro lado, nos pacientes da região da Lombardia (Itália), os níveis elevados de colesterol foram preditores independentes de maior mortalidade na análise multivariada, com risco relativo de 1,25 (Grasselli G et col – Risk Factors Associated With Mortality Among Patients With COVID-19 in Intensive Care Units in Lombardy, Italy – JAMA Intern Med. Published online July 15, 2020. doi:10.1001/jamainternmed.2020.3539).
Exemplificamos, assim, como estudos observacionais, feitos em populações diferentes e em momentos distintos da evolução da doença, podem mostrar conclusões, à primeira vista, conflitantes. Podemos especular que o estudo italiano identifica níveis elevados de colesterol acompanhando os fatores de risco mais conhecidos (idade avançada, diabetes e doença cardíaca preexistente), enquanto o estudo chinês possivelmente descortina as repercussões das formas mais graves da Covid-19 sobre o estado nutricional dos doentes, resultando em baixos níveis de colesterol.
Já as publicações elaboradas basicamente a partir de referenciais teóricos, sem o respaldo da observação de amostras adequadas de pacientes, podem também levar a conclusões antagônicas. A observação de Wuhan, relatada acima, de que o nível mais baixo de colesterol associou-se à maior gravidade da Covid-19, levou alguns autores a defender que o uso de medicamentos para tratamento da hipercolesterolemia poderia resultar em aumento da incidência e gravidade da Covid-19, até mesmo com aumento da mortalidade (Sanjay S. Statin drug therapy may increase COVID-19 infection. Nepalese Medical Journal 2020; 3. Epub ahead of print.) – (Ravnskov U. Cholesterol-lowering treatment may worsen the outcome of a Covid-19 infection. BMJ 2020; 368:m1182. www.bmj.com/content/368/bmj.m1182/rr-10).
Por outro lado, numa elegante interpretação dos mecanismos patogênicos dos Coronavírus e da estrutura molecular das membranas celulares, recentemente foi publicado um estudo sugerindo exatamente o contrário: que as estatinas, utilizadas para tratamento da hipercolesterolemia, teriam efeito antitrombótico, anti-inflamatório e imunomodulatório, além de atuar na principal protease do Coronavírus, inibindo sua replicação. Defendem os autores deste trabalho a tese de que o tratamento com as estatinas reduziria a gravidade, a duração e as complicações da Covid-19 (Radenkovic D et col – Cholesterol in Relation to COVID-19: Should We Care about It? – J Clin Med 2020; doi:10.3390/jcm9061909).
Como em muitas outras aparentes “inconsistências” da Ciência para responder aos desafios da pandemia de Covid-19, é necessário ter cautela antes de aceitar como verdade inquestionável a conclusão de um trabalho científico. Muitas decisões terapêuticas necessitam de validação por estudos mais amplos e controlados, de preferência com randomização, antes de serem adotadas de forma extensa e indiscriminada.
No caso do colesterol, por exemplo, à luz dos dados disponíveis até o momento, é especulativo afirmar que o colesterol elevado tenha algum efeito sobre os riscos de adquirir a Covid-19 ou de evolução para formas mais graves. Do mesmo modo, não é possível afirmar que o uso de medicamentos para controle da hipercolesterolemia possa ter algum efeito no tratamento desta doença.
Como recomendação atual, podemos dizer que não há necessidade de suspender os medicamentos hipolipemiantes (estatinas) em quem já os utiliza, nem de iniciar sua administração com a finalidade específica de prevenir complicações da Covid-19. Estudos mais amplos e bem desenhados virão, a seu tempo, lançar nova luz sobre estas perguntas.
Luiz Velloso é cardiologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo