CFM condiciona uso de cloroquina e hidroxicloroquina à critério médico e consentimento do paciente

O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou o Parecer nº 04/2020 no qual estabelece critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de Covid-19. Após analisar extensa literatura científica, a autarquia reforçou seu entendimento de que não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento dessa doença. Porém, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia de Covid-19, o CFM entende ser possível a prescrição desses medicamentos em três situações específicas.

CONFIRA AQUI A ÍNTEGRA DO PARECER CFM Nº 04/2020

Em todas as situações, o princípio que deve, obrigatoriamente, nortear o tratamento do paciente é o da autonomia do médico, assim como a valorização da relação médico-paciente, “sendo está a mais próxima possível, com o objetivo de oferecer ao paciente o melhor tratamento médico disponível no momento”.

Cenários – Na visão do CFM, a primeira possibilidade em que pode ser considerada o uso cloroquina e da hidroxicloroquina é no caso de paciente com sintomas leves, em início de quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue) e exista diagnóstico confirmado de Covid-19. A segunda hipótese é em paciente com sintomas importantes, mas ainda sem necessidade de cuidados intensivos, com ou sem recomendação de internação.

O terceiro cenário possível é em paciente crítico recebendo cuidados intensivos, incluindo ventilação mecânica. Porém, ressalta o Parecer, é “difícil imaginar que em pacientes com lesão pulmonar grave estabelecida e, na maioria das vezes, com resposta inflamatória sistêmica e outras insuficiências orgânicas, a hidroxicloroquina ou a cloroquina possam ter um efeito clinicamente importante”.

Em todos os contextos, a prescrição das drogas caberá ao médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente. O documento do CFM ressalta que o profissional fica obrigado a explicar ao doente que não existe, até o momento, nenhum trabalho científico, com ensaio clínico adequado, feito por pesquisadores reconhecidos e publicado em revistas científicas de alto nível, que comprove qualquer benefício do uso das drogas para o tratamento da COVID-19. Ele também deverá explicar os efeitos colaterais possíveis, obtendo o Consentimento Livre e Esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.

Infração ética – Observados esses aspectos, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina em pacientes portadores da doença. Em seu parecer, o CFM aponta ainda para a necessidade de acompanhamento constante dos avanços científicos no enfrentamento da Covid-19.

“Essas considerações que serviram de base para as decisões do CFM basearam-se nos conhecimentos atuais, podendo ser modificadas a qualquer tempo pelo Conselho Federal de Medicina à medida que resultados de novas pesquisas de qualidade forem divulgados na literatura”, ressalta o texto.

Para chegar a essas conclusões, o CFM promoveu reuniões com representantes de diferentes sociedades de especialidades médicas, além de pesquisadores convidados. O grupo fez uma extensa revisão da literatura científica disponível sobre o tema.

Evidências – Ao final do trabalho, concluiu-se que “não existem evidências robustas de alta qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica específica para a Covid-19”. Também foi constatado que, desde o fim de 2019, medicamentos estão sendo testados, muitos deles com resultados promissores em testes em laboratório e através de observação clínica. Apesar disso, “nenhum ainda foi aprovado em ensaios clínicos com desenho cientificamente adequado, não podendo, portanto, serem recomendados com segurança”.

Para o CFM, agora, o constante acompanhamento dos resultados dos estudos com medicamentos é de extrema relevância para atualizar, periodicamente, as recomendações sobre o tratamento da Covid-19. Segundo o documento, existe consenso entre os pesquisadores de diferentes países de que ensaios clínicos, com desenho adequado do ponto de vista científico, são urgentes para orientar os médicos sobre qual o melhor tratamento para essa doença.

Há relatos de que no cuidado de pacientes com Covid-19, a cloroquina e a hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a antibióticos, têm sido utilizadas, baseadas em resultados de estudos observacionais. Porém, como explica o CFM, apesar de existirem justificativas para o uso desses medicamentos, baseadas em suas ações anti-inflamatórias e contra outros agentes infecciosos, seu baixo custo e os efeitos colaterais conhecidos, não há, até o momento, estudos clínicos de boa qualidade que comprovem sua eficácia em pacientes com Covid-19.

Efeitos adversos – Porém, essa situação pode mudar rapidamente. Por exemplo, a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, em documento publicado em 11 de abril, recomenda que a hidroxicloroquina e a cloroquina, isoladamente ou associadas a azitromicina, só sejam utilizadas em pacientes internados apenas dentro de protocolos clínicos de pesquisa.

Por sua vez, a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), ao analisar a segurança da cloroquina e da hidroxicloroquina faz algumas considerações, como a descrição de seus efeitos colaterais mais comuns: desconforto abdominal, náuseas, vômitos e diarreia. Contudo, podem também ocorrer toxicidade ocular, cardíaca, neurológica e cutâneas.

Pacientes portadores de psoríase, porfiria e etilismo podem ser mais suscetíveis a eventos adversos cutâneos, geralmente sem gravidade. Em casos raros, pode ocorrer hemólise em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase. A SBR ainda pede que seja dada atenção especial à interação com outras drogas, como macrolídeos, quinolonas, alguns anti-virais e antipsicóticos, o que pode levar a problemas cardíacos (alargamento do intervalo QT).

Prevenção – No que se refere às estratégias e métodos de prevenção à Covid-19, o documento do CFM ressalta que as únicas reconhecidas, até o momento, para prevenir a infecção são o reforço à higienização e se evitar a exposição ao vírus. Não há menção a qualquer medicamento ou substância com essa finalidade.

“As medidas de isolamento social têm sido recomendadas em todo o mundo como a única estratégia eficaz para impedir a disseminação rápida do coronavírus”. Com isso, impede-se a sobrecarga dos sistemas de saúde, permitindo cuidados aos pacientes com Covid-19, em especial os mais graves, que necessitam de internação hospitalar e UTIs.

A autarquia também afirma que medidas focadas na higienização também são altamente recomendadas, como lavar frequentemente as mãos; não tocar os olhos, o nariz e a boca com as mãos não lavadas; evitar contato próximo com as pessoas; e cobrir a boca e o nariz com o antebraço ao tossir ou espirrar ou com lenços descartáveis.

Ainda se recomenda a procura de atendimento médico, imediatamente, se a pessoa tiver febre, tosse e dificuldade em respirar. “O reconhecimento precoce de novos casos é primordial para a prevenção da transmissão. Atualmente, sabe-se que os casos não detectados e assintomáticos são os maiores responsáveis pela elevada taxa de transmissão de SARS-CoV2”.

No caso de pacientes com quadros graves, o parecer do CFM aponta que a literatura científica indica que há evidências fortes de que o cuidado efetivo aos pacientes com Covid-19, com diminuição da mortalidade, está relacionado à oferta de infraestrutura adequada. Assim, a presença de médicos e equipes de saúde com preparo adequado e com equipamentos de proteção individual em número suficiente; a existência de leitos de internação e de UTI; a presença de equipamentos de ventilação mecânica de boa qualidade e em número suficiente; assim como o encaminhamento para cuidados intensivos, quando indicado, são listados entre as ações recomendadas.

Artigo – Hidroxicloroquina x Covid-19: análise do direito médico brasileiro

Em razão da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a comunidade científica mundial está em uma busca incansável de medicamentos e vacinas que possam conter a propagação desse vírus e imunizar a população.

Enquanto perduram as pesquisas, os especialistas, que já́ sequenciaram o genoma desse novo coronavírus, encontraram na hidroxicloroquina um resultado positivo na diminuição da carga viral no paciente, podendo levar a uma remissão da doença em casos clinicamente agravados. Porém, é importante ressaltar que a administração do medicamento, que é indicado para afecções reumáticas, dermatológicas e malária, ainda não tem indicação farmacológica específica para o Covid-19.

Em um contexto mais amplo, cada medicamento registrado no Brasil possui aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão regulador vinculado ao Ministério da Saúde. Dentre suas atribuições, está, principalmente, o registro de medicamentos que visa o bem-estar físico, mental e social da sociedade. Para que sejam aprovadas as suas indicações, são necessárias que sejam comprovadas a qualidade, eficácia e segurança de cada medicamento, baseando-se em avaliações de estudos clínicos que comprovem, mais especificamente, os dois últimos requisitos citados. A hidroxicloroquina, por exemplo, não é registrada para o uso específico do novo coronavírus.

Contudo, existe uma prática paralela ao uso de tais remédios que ainda não possuem comprovação direta. A OMS (Organização Mundial da Saúde) conceitua medicamentos “off label” como todas as indicações usuais que não foram descriminadas em bula ou que ainda não possuam sua indicação aprovada pela agência reguladora para o fim no qual foi destinado. Nos EUA, o uso off label é uma prática legal e o FDA (Food and Drugs Administration), agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos norte-americano, regulamenta a comercialização de medicamentos que ainda não possuam estudos aprovados para as indicações prescritas por profissionais de saúde, como é o caso da hidroxicloroquina.

No Brasil, para o Ministério da Saúde, o uso off label apenas se justifica quando as indicações estiverem apresentadas em estudos científicos com perfis comparativos, apresentando custo-benefício, além da eficácia, efetividade e segurança na sua indicação. A prática off label pode elevar os riscos de danos à saúde, portanto, não tem aprovação da agência reguladora brasileira. Embora a prática não seja incorreta, são necessários anos de estudos e ensaios clínicos para então se concluir uma nova indicação de um medicamento.

Portanto, diante do quadro pandêmico do Covid-19, onde milhares de pessoas ao redor do mundo estão sendo infectadas e mortas e ainda sem a descoberta de uma droga ou vacina específicos, a pergunta mais comum é: a hidroxicloroquina, cuja experiência já́ rendeu resultados positivos, deve ser ministrada mesmo não sendo autorizada pela Anvisa?

Diante dessa questão, cabem algumas ponderações no âmbito do direito médico brasileiro sobre a responsabilidade médica na indicação de medicamentos dessa natureza.

O Código de Ética Médica preconiza em seu artigo XXI que “no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.

Com essa observação, a aceitação do médico assistente sobre a escolha e consentimento por parte do paciente ou familiar encontra respaldo legal, nas hipóteses de procedimentos terapêuticos cientificamente comprovados, o que não envolve a medicação em análise. Na indicação terapêutica de remédio sem aprovação cientifica, o médico assistente é responsável por eventuais danos ocasionados ao paciente decorrentes da administração do remédio, tanto na esfera ético-profissional quanto cível e criminal.

Por isso, a indicação terapêutica de medicamento off label deverá ser prescindida por um “Termo de Consentimento Informado” pelo paciente ou seu familiar visando minimizar a responsabilidade do profissional na hipótese de consequências danosas em razão da sua administração.

Nos deparamos com uma outra situação embaraçosa para o profissional acerca da “chance de cura”. Na medida em que os bons resultados da hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19, especialmente em casos graves, vêm a público, sua não administração também poderá́ responsabilizar o médico caso o paciente venha a óbito, podendo ser considerada como uma “última chance” que o profissional não tentou. Tal desfecho poderá́ acarretar discussão judicial em ação indenizatória contra o médico e hospital. A “perda de uma chance” é uma construção doutrinária francesa e adotada por outros países com plena aceitação jurisprudencial em nossos tribunais.

Assim, cabe ao profissional em comum acordo com o paciente ou familiar responsável a difícil decisão de administrar um medicamento não regulamentado que, empiricamente, tem trazido resultados satisfatórios no tratamento do novo coronavírus.

José Salamone é advogado especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito e Universidade de Coimbra, Portugal. É membro da Comissão Especial de Direito Médico da OAB/SP e credenciado pelo Conselho de Ética e Disciplina junto ao CREMESP (Conselho Regional de Medicina de São Paulo). www.jsalamone.com.br / advocacia@jsalamone.com.br OAB/SP: nº 103.587

Redação

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