Os desafios e as motivações para gerir um hospital da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Por Carol Gonçalves

 

A economista Aline de Andrade Costa, gerente de compras da organização MSF – Médicos Sem Fronteiras, acaba de voltar de Beirute, no Líbano, onde foi responsável pelo controle de compras do hospital em Bar Elias. Nesta entrevista especial, ela conta sua experiência, como funciona o sistema de saúde no país, suas motivações, planos para o futuro e valores que partilha com a organização médica internacional.

 

Quando e por que começou a atuar na Médicos Sem Fronteiras?

Trabalhei no setor privado por mais de 20 anos. Durante esse tempo, eu participava paralelamente de alguns projetos sociais no Rio de Janeiro. Em 2017, através de uma amiga, conheci mais detalhes sobre os trabalhos desenvolvidos pela Médicos Sem Fronteiras e senti vontade de colaborar diretamente com a causa. Posso dizer que minha amiga foi fundamental durante esse processo, pois ela me inspirou e me incentivou.

Fale sobre seu trabalho pela MSF, quais as atividades que você executa?

Eu fui para o Líbano em 2017 para coordenar a área de suprimentos. De forma resumida, minha missão era mapear o mercado, definir estratégia de compras, garantindo sua implementação, negociar com os stakeholders internos e externos, implementar gestão de contratos e sistema de monitoramento de performance dos fornecedores, além de formar a equipe local.

Conte-nos como foi sua experiência no controle de compras do hospital em Beirute.

A MSF atuou pela primeira vez no Líbano em 1976, para fornecer apoio médico durante a Guerra Civil. Desde 2011, a organização tem expandido continuamente sua resposta médica no país. Atualmente, estamos trabalhando em nossos centros no Vale do Bekaa, no Norte do Líbano, e nas cidades de Beirute e Saida, oferecendo assistência médica primária e assistência materno-infantil para as populações mais vulneráveis, incluindo refugiados. Em 2018, inauguramos o hospital em Bar Elias. O projeto foi bastante desafiador. Trabalhamos intensamente para garantir que as necessidades fossem atendidas, tanto tecnicamente quanto em termos de prazo e custo. Nossa área foi responsável por identificar as necessidades, mapear as alternativas e negociar todos os equipamentos, aparelhos e consumíveis, bem como os medicamentos para o hospital. Tudo isso em tempo recorde. E só foi possível graças ao trabalho que desenvolvemos em equipe.

Fale sobre a estrutura do hospital, tamanho, especialidade, números de atendimento…

O hospital de Bar Elias fornece serviços médicos e cirúrgicos para a população vulnerável. Foi inaugurado com 24 leitos, mas possui estrutura para acomodar até 58. Nesse hospital, a MSF faz cirurgias eletivas para aqueles que precisam de hospitalização, incluindo atendimento médico geral, acompanhamento e cuidados pós-operatórios.

Como era sua rotina?

A rotina da área de suprimentos era bastante dinâmica e exigia muita habilidade no que se refere a negociação, resolução de problemas e flexibilidade. A organização possui altos padrões de qualidade que precisam ser mantidos em todos os países e operações. Nossa área trabalhava para atender às necessidades dos projetos, maximizando as oportunidades e minimizando os riscos (qualidade, ruptura de abastecimento, fraudes, etc).

É possível comparar a estrutura hospitalar de lá com a brasileira?

É difícil estabelecer comparações porque os contextos são muito diferentes. O sistema público de saúde no Líbano possui uma rede pequena que opera em regime de coparticipação em um país onde a pobreza ainda é um desafio grande. O paciente precisa pagar um percentual que varia de acordo com o procedimento realizado. O sistema privado predomina em quase todo o país, sendo responsável por quase todos os serviços. Mas a infraestrutura costuma ser muito boa e as tecnologias disponíveis são geralmente avançadas. Infelizmente, esses recursos não estão à disposição de uma parcela significativa da população.

Quais os desafios da saúde no Líbano? Quais as principais carências?

O Líbano é um país muito interessante, com seus desafios. O PIB médio por pessoa é relativamente alto e o sistema de saúde é majoritariamente privado. Paralelamente a isso, verifica-se uma elevada desigualdade de renda, em que cerca de um terço da população libanesa vive abaixo da linha de pobreza. O sistema de saúde do país, que já apresentava um alto nível de exclusão, foi ainda mais impactado com a chegada de pessoas em situação de refúgio, vindas de outros países. Verificou-se na última década um crescimento vertiginoso nos desafios enfrentados pelo governo no que tange ao atendimento das necessidades em todos os níveis na área da saúde.

Como a MSF vem mudando essa realidade?

Várias avaliações foram realizadas e pode-se observar a falta de acesso a cuidados médicos de níveis primário, secundário e terciário, tanto para os refugiados quanto para as populações libanesas mais vulneráveis. À medida que o número de refugiados aumentava, e considerando as dificuldades enfrentadas pelo governo para lidar com as crescentes necessidades médicas da população, a MSF decidiu ampliar suas atividades no Líbano. Em 2017, a organização possuía 12 clínicas nas áreas mais carentes do país, fornecendo serviços de saúde que contemplam pediatria, doenças crônicas, tratamento de doenças agudas, programas de saúde voltados para a mulher, além de serviços de saúde mental. Em conjunto, a MSF também faz promoção da saúde entre a população, o que significa levar informações importantes e abrir diálogo com as comunidades. Também em 2017, expandimos nossa capacidade de atendimento para os níveis secundário e terciário, com a abertura da uma unidade pediátrica no Hospital Governamental Elias Haraoui, na região de Zahlé. E, em 2018, como já falado, inauguramos o hospital de Bar Elias.

Fale sobre sua experiência com resolução de problemas. Como foi útil em sua missão pela MSF?

A experiência acumulada ao longo da minha vida profissional e o foco na solução de problemas foram fundamentais para simplificar as adversidades enfrentadas diariamente. Uma boa comunicação e a capacidade de mediar conflitos também são essenciais, pois, no Oriente Médio, problemas simples podem se tornar gigantes pelas diferenças culturais.

A realidade dessas pessoas é muito dura. O que motiva seu trabalho?

Para contextualizar, o Líbano possui cerca de 6 milhões de habitantes. Com o agravamento de algumas crises no Oriente Médio, o número de refugiados cresceu para, aproximadamente, 1,5 milhão de pessoas. Um imenso número delas vive em assentamentos informais, abrigos coletivos, fazendas, construções inacabadas, sem acesso adequado a abrigo, alimento e água. A falta de cuidados de saúde é um dos principais problemas. Dito isto, pode-se imaginar uma parte das dificuldades que os refugiados enfrentam diariamente no Líbano. Durante minha missão nesse país, tive a oportunidade de conhecer todos os projetos de norte a sul e pude ver de perto a dura realidade da população atendida (refugiados e libaneses em situação vulnerável) e as dificuldades enfrentadas diariamente pelas nossas equipes de campo. Durante todo o tempo e todas às vezes em que eu entrava em uma negociação, sabia exatamente para que e para quem eu estava trabalhando. Isto era o que mais me motivava.

Que sentimentos, valores e atitudes a experiência com a MSF te trouxe?

A Médicos Sem Fronteiras é uma organização médica internacional independente que fornece ajuda médica de emergência para vítimas de conflitos, desastres naturais e aqueles excluídos do sistema de saúde. A MSF oferece assistência às pessoas mais vulneráveis, independentemente de gênero, religião, credo ou filiação política. Seus valores estão muito em linha com os meus próprios princípios. Somos todos seres humanos e devemos olhar para o nosso próximo com mais empatia e respeito, a despeito de qualquer diferença. Durante o tempo que estive no Oriente Médio, passei por diversas experiências e dificuldades das mais diversas. Conheci pessoas maravilhosas que, apesar do sofrimento, eram capazes de sorrir e compartilhar o pouco que tinham com os demais. Percebi que pequenas atitudes realmente podem mudar positivamente o dia das pessoas que nos cercam.

Quais seus próximo passos na MSF?

Em janeiro de 2019 assumi uma posição na MSF na qual, com a experiência que acumulei ao longo da minha carreira profissional, posso dar suporte e compartilhar o conhecimento no que tange a área de suprimentos nos diversos países onde a MSF atua.

Tem planos para o futuro?

Penso em continuar a me especializar para poder melhor apoiar a MSF nos futuros desafios e, possivelmente, começar a atuar também na área acadêmica para disseminar o conhecimento.

Quais características você acha fundamentais para atuação em uma causa humanitária?

Primeiramente ter vontade de ajudar e ter empatia com o próximo. Em segundo lugar, capacidade de resolução de problemas, flexibilidade e equilíbrio, visto que os desafios enfrentados são os mais diversos.

Que dicas você dá a outras pessoas que pretendem atuar pela MSF?

Estudem sobre o contexto onde a MSF atua e se preparem tecnicamente na área que querem atuar. Isso é o básico. Mas, acima de tudo, coloquem amor e dedicação, pois eles são o combustível necessário para superar os desafios que serão encontrados.

Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 96, de março/abril de 2019. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-96-revista-hospitais-brasil

Redação

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