Por Carol Gonçalves
“A maior certeza dessa existência é que um dia todos vamos morrer, pois a vida é uma jornada que tem começo, meio e fim”. Esta frase está em um artigo de Tércia Soares Sharpe – escritora, palestrante e consultora sobre assuntos relacionados ao fim da vida – e ilustra um assunto delicado que merece atenção de todos, afinal, quem nunca vai morrer? É a este tema que nossa entrevistada dedica sua vida.
Bacharel em Enfermagem com 40 anos de experiência, Tércia tem mestrado em Missiologia e especialização em Cuidados Intensivos, associada à Fundação de Pesquisas ELNEC – End-of-Life Nursing Education Consortium, vinculada à AACN – American Association of Colleges of Nursing. Ela já atuou como enfermeira de cabeceira e esteve nas áreas administrativas e educacionais da enfermagem no Brasil e nos Estados Unidos. Especializada em cuidados paliativos, iniciou o Programa do Fim da Vida no Hospital INOVA Loudoun, de Virgínia, do qual foi coordenadora por nove anos. Também é treinadora do Curso ELNEC para enfermeiros nos Estados Unidos, agora também disponível no Brasil. Em 2012, foi premiada por seu comprometimento em promover cuidados paliativos com excelência a pacientes críticos, oferecido pelo ELNEC. Já em 2013, recebeu o prêmio de Enfermeira Inovadora do Ano, pela INOVA Health Systems, por iniciar o programa do fim da vida na instituição.
Nesta entrevista, Tércia explica desde o termo “missiologia” até o que significa o curso ELNEC e o Programa do Fim da Vida. Ela também aborda as características que um profissional deve ter quando se fala em cuidados paliativos e comenta seu livro “Última palavra”. Após a leitura, é possível dizer que devoção e gratidão expressam sua jornada!
O que é “missiologia” e como se relaciona com a área da saúde?
Missiologia é um ramo da Teologia que se preocupa em entender e respeitar a religião e a cultura dos outros sem negar nosso compromisso ou crença pessoal. A missiologia estuda os desafios, as barreiras, a maneira como devemos nos preparar para poder servir bem em outra cultura e como se integrar a um contexto muito diferente do seu, entre outros temas. Especialmente no fim da vida, o ser humano procura significado. O conhecimento sobre diferentes culturas nos torna mais abertos e capazes de respeitar nossos pacientes ao encontrarem significado para as doenças, o sofrimento e a morte. Nosso entendimento sobre cultura não pode estar limitado apenas a raça, etnicidade e afiliações religiosas, há muitas variáveis. Cada ser humano é único e queremos personalizar o cuidado a cada paciente e seus familiares na conclusão do ciclo da vida.
O que é o Programa do Fim da Vida?
É um programa que criei para melhorar o atendimento ao paciente e seus familiares no fim da vida. Esse programa abrange três segmentos: estabelecer normas, condutas e rotinas no cuidado ao paciente; treinamento de enfermeiros para capacitá-los a cuidar de pacientes no fim da vida, baseado no programa ELNEC; e culto em memória dos pacientes.
Partindo de sua experiência no Brasil e nos Estados Unidos, quais as principais diferenças entre esses países quando se fala no cuidado no fim da vida?
Hoje, nos Estados Unidos, 1.800 hospitais têm cuidados paliativos, isso significa que mais de 80% dos pacientes hospitalizados com doenças graves têm acesso a este serviço, segundo dados divulgados no site www.medscape.com. Ainda existe a dificuldade de aceitação por parte de alguns médicos, mas o próprio paciente ou o familiar pode solicitar uma consulta com um profissional de cuidados paliativos. O médico do paciente não precisa concordar ou autorizar essa consulta. Muitas vezes as famílias desconhecem esse recurso, então os enfermeiros treinados iniciam essa conversa. Aqui no Brasil, entendo que junto à falta de equipes de cuidados paliativos nos hospitais e clínicas, os médicos que praticam a medicina tradicional – que tenta curar a doença – não têm muito conhecimento sobre essa especialidade e por isso não indicam. A população precisa ser educada com relação às opções de tratamentos que existem para o fim da vida.
Quais os principais receios dos próprios profissionais da saúde quando se fala nos cuidados no fim da vida?
Falta conhecimento. A grande maioria desconhece no que consistem os cuidados paliativos. Os médicos temem ser processados por não tentar usar todos os meios possíveis para salvar o paciente até o fim: a distanásia. Os enfermeiros, por falta de conhecimento, não defendem os interesses dos pacientes, mesmo quando eles têm o testamento vital. Esses dados foram divulgados pelo site da Folha de S. Paulo, em maio de 2017.
O que é o curso ELNEC e qual a importância de estar disponível agora no Brasil?
ELNEC é uma fundação de pesquisas que tem como objetivo educar enfermeiros em cuidados paliativos e é administrado pela AACN, em Washington DC e City of Hope, em Los Angeles, Califórnia. Estes cursos já foram oferecidos em 96 países. Nos Estados Unidos, mais de 23.000 enfermeiras receberam esse treinamento. Os aspectos abordados são: cuidados paliativos/cuidados de conforto, aspectos éticos e legais, aspectos culturais e espirituais, sintomas e medicações, técnicas de comunicação com pacientes e familiares, últimas horas de vida, perda/falecimento/tristeza. Minha proposta é oferecer o curso por estado ou região do Brasil. São 16 horas de treinamento divididas em dois dias. Logo anunciarei no meu site (terciasoaressharpe.com) possíveis datas e detalhes sobre o programa. A região que apresentar o maior número de interessados será aquela por onde vou começar.
Quais as principais características que um profissional deve ter quando se fala em cuidados paliativos?
Características pessoais: autenticidade, honestidade, atenção, apreciação, receptividade, responsabilidade, respeito e aceitação. Características relacionadas aos valores: no relacionamento, a maneira como dialoga, companheirismo, saber relevar, saber manter proximidade e ao mesmo tempo promover privacidade, ter uma abordagem sistêmica. Competência nos cuidados: percepção, ouvir atentamente, se envolver sem ocupar muito o espaço. Vale lembrar que tudo isso se aprende.
Como instituir o Programa do Fim da Vida no hospital, que você aborda em um curso?
O hospital contrata os meus serviços e, se já houver uma pessoa indicada para cuidados paliativos, eu adapto o programa que tenho para as necessidades do hospital. Mas, basicamente, consiste em: elaboração de um manual de rotinas para que todos os enfermeiros sigam o mesmo padrão e isso se torne um diferencial para a instituição; o profissional indicado deve assistir a um treinamento ELNEC para que possa ter condições de orientar a sua equipe; implementação do Culto em Memória passo a passo – inclusive apresentei um pôster sobre esse assunto em uma conferência nacional do ELNEC em Washington DC; e reuniões regulares para que os enfermeiros possam falar como estas “perdas” afetam a vida deles, com a presença de psicólogos especializados.
Quais os desafios que os hospitais encontram para instituir esse programa? Como superá-los?
Eu diria que o desafio não é tanto do hospital, mas, sim, do profissional que se dispõe a mudar a rotina para fazer algo melhor ao paciente e seus familiares, e que, no final do dia, traga maior satisfação e realização a ele. O desafio do hospital é procurar ouvir e entender os benefícios do programa para o paciente, os familiares e o próprio hospital, e apoiar financeiramente, enviando pelo menos dois enfermeiros para os treinamentos ELNEC, pagando o curso, as passagens e o hotel. Com uma população educada com relação às decisões com respeito ao fim da vida, ao escolherem cuidados paliativos e de conforto quando viver naturalmente deixar de ser uma opção, os hospitais evitarão de gastar o absurdo que se gasta na distanásia. Com esse dinheiro, educam os profissionais e realizam campanha de doação de órgãos.
Sobre o prêmio de Enfermeira Inovadora, recebido em 2013, a que você credita essa conquista?
O meu sonho era valorizar aquela pessoa que chegava ao fim da maratona da vida e ajudar os familiares a sentirem um carinho especial no tratamento oferecido num momento tão sensível e honroso. Então eu criei o Programa do Fim da Vida, que foi o resultado de especialização nessa área, com muita leitura e pesquisa. No começo, fazia tudo sozinha porque ninguém achava importante, exceto os familiares – o suficiente para eu continuar. Incentivei outras enfermeiras a receberem o treinamento ELNEC para que pudessem se tornar educadoras também. Então, idealizei o programa de educação para enfermeiros baseado no ELNEC, valendo horas de educação continuada, no estado da Virgínia, nos Estados Unidos. E criei o culto em memória, que era a menina dos meus olhos! No início, eu pedia às voluntárias que fizessem bolos para eu servir com café no final. Depois de um ano, a administração passou a liberar o que eu quisesse oferecer no término do culto. A satisfação dos pacientes e familiares se elevou, e muito, então me premiaram. Continuei como coordenadora desse programa por nove anos e, por motivos pessoais, tive de mudar de estado, mas, graças a Deus, o programa continua.
Em seu site, diz que você tem dedicado sua vida a pesquisar como dar respostas para perguntas incômodas. Quais as perguntas mais comuns?
As perguntas mais comuns em nossa cultura ocidental são em relação a evitar a morte, uma possibilidade de driblar a situação. É uma decepção profunda, porque viver, infelizmente, deixa de ser uma opção. No processo que leva ao fim, procuro ajudar os pacientes e familiares a valorizarem a memória e os momentos especiais, converso sobre o legado que deixaram. Quando o paciente está consciente, incentivo os familiares a “permitirem” que o ente querido se vá, ao invés de desesperadamente repetirem que “ele é forte e vai sair dessa”. O amor altruísta dos familiares precisa ser praticado, e eu os alerto para isso. Em outras culturas, as pessoas sofrem em silêncio e passam o dia lendo o livro sagrado e orando. Aprendi que, em uma dessas culturas, usar de todos os recursos artificiais existentes até o final é sinal de obediência ao Deus que adoram. Não podemos julgar ninguém. Nestes casos, o approach é outro. Eles não precisam de muita explicação, pois têm mais serenidade com relação ao fim da vida, apesar de explorarem o que chamaríamos de distanásia até o fim. Cada caso é um caso. Alguns já sabem, mas querem ouvir só como uma confirmação. Em todas as situações, procuro uma maneira de redimensionar a vida para que tenham a oportunidade de experimentarem paz interior.
Como você começou a se interessar pelo assunto?
Eu sempre fui muito sensível à morte. Logo que me formei, chorava quando um paciente morria, ia aos enterros e era consolada pelas famílias. Os anos passaram e eu ainda choro, às vezes vou à cerimônia fúnebre. Lembro que, em 1990, enquanto trabalhava na UTI do Hospital Israelita Albert Einstein, um pai de família jovem morreu subitamente e eu fiquei devastada. Deixou uma esposa jovem e duas crianças muito pequenas desoladas. Decidi que gostaria de me preparar melhor para ajudar os sobreviventes. No trajeto, descobri que a melhor maneira de ajudá-los é dando apoio para que as pessoas tenham uma morte boa, com qualidade de vida e dignidade.
Fale sobre o seu livro “Última palavra”, qual seu objetivo?
Ajudar as pessoas a entenderem que a morte é parte da vida, pois a vida é um ciclo que tem começo, meio e fim. Educar a sociedade a fazer um Testamento Vital agora, enquanto estão saudáveis, pois cada pessoa deve ter a última palavra no que se refere ao fim da vida. Elas só vão fazer testamento vital quando aceitarem a finitude da vida.
Cite uma passagem marcante de sua carreira de 40 anos como enfermeira.
Aconteceu há aproximadamente 10 anos, quando fui caluniada e marginalizada no ambiente de trabalho por algumas colegas. Eu descrevo no livro e vocês podem ler. Pensei em desistir e sair do hospital, mas Deus me sustentou e continuei lá porque acredito que nada em nossa vida acontece por acaso. Depois de uma batalha interior, consegui perdoar as minhas colegas sem mesmo elas saberem, pois não acredito que elas sentiram essa necessidade. Depois disso, quando o meu coração voltou a ser leve, o trabalho do fim da vida floresceu e a minha profissão se tornou a minha missão. Então, em meu coração, procuro guardar apenas gratidão.
Qual sua rotina?
Ela varia. Acordo, tenho uns minutos de leitura da Bíblia e oração e peço sabedoria, porque sei que o paciente ou os familiares irão precisar de minha ajuda para tomarem decisões que, infelizmente, não foram tomadas com antecedência. Hoje em dia, trabalho nos hospitais que contratam o meu serviço para introduzir o programa do Fim da Vida, treinamento para enfermeiros e culto em memória. Trabalho de um a três dias por semana, por isso minha rotina é variada. Depois que o serviço estiver montado, vou para outro hospital. Nesse contexto, alguns dias estabeleço metas de treinamento, após observar a dinâmica de uma UTI, por exemplo, e ver se há diferença ou não na maneira como um paciente em fase final é tratado. Outras vezes, oriento os familiares que levam seus entes queridos para viverem os últimos dias em casa. O que dizer, a quem recorrer, etc. Outras vezes fico em casa e escrevo.
Quais seus planos para o futuro?
Dentro de dois meses, quero lançar a versão do livro em inglês e continuar educando a população em geral com relação ao fim da vida, incluindo os aposentados. A Flórida, nos Estados Unidos, é um campo vastíssimo. Pretendo continuar desenvolvendo esse trabalho nos dois países e, se possível, estendê-lo a outros.
Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 91, de maio/junho de 2018. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-91-revista-hospitais-brasil