Enquanto a maioria da população está de olho na vacinação da Covid-19, pacientes submetidos ao transplante de medula óssea (TMO) devem tomar novamente todas as vacinas que já tinham recebido ao longo da vida. O alerta é de João Prats, infectologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, um dos principais centros transplantadores de medula óssea do país e o principal da capital paulista. O médico afirma que a revacinação permite que o sistema imunológico do paciente reaprenda a combater vírus e bactérias que até a realização do procedimento eram reconhecidos e neutralizados pelo organismo. Sem a nova vacinação, a pessoa transplantada fica sujeita a inúmeras doenças, entre elas algumas que já tinham se transformado em fatos do passado como catapora, caxumba e rubéola.
O médico da BP faz uma metáfora com a informática para explicar o que ocorre no corpo. “O transplante de medula óssea promove um reset no sistema imunológico, apagando todos os programas anteriormente guardados na memória. O corpo esquece como combater as infecções que já conhecia antes do transplante. A cada vacinação, o sistema imunológico adquire um novo programa de defesa. Com o transplante, todos eles desaparecem e têm de ser novamente instalados”, diz.
O que ocorre em cada tipo de transplante
A medula óssea é um tecido que funciona como berçário das células que compõem nosso sangue (glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas). Todas elas se formam e se diferenciam a partir de uma célula-mãe: a célula-tronco. No transplante autólogo, o paciente recebe células-tronco da própria medula óssea; no alogênico, ele as recebe de um doador. Geralmente, o transplante autólogo é adotado no tratamento de mieloma múltiplo e de linfoma; e o alogênico, nas leucemias.
No transplante autólogo, as células-tronco retiradas da medula óssea do paciente são reintroduzidas após o processo de condicionamento, em que potentes doses de quimioterápicos e, às vezes, radioterapia, são administradas para eliminar as células que compõem a medula óssea existente. Com isso, são aniquiladas as células indesejáveis e também é perdida a maior parte das células de memória, os linfócitos responsáveis por armazenar os programas de defesa do organismo.
Já no transplante alogênico, além da destruição das células de memória para preparar o organismo para receber as células-tronco transplantadas de um doador, existe outro complicador. Para prevenir a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) – em que a medula transplantada identifica o organismo do paciente com um elemento invasor e passa a atacá-lo – são administrados mais medicamentos imunossupressores. Ou seja, além de o sistema imunológico já ter perdido a memória na fase de condicionamento, ele tem mais dificuldade em criar novos programas de defesa por causa da imunossupressão.
Estratégia imunológica
Após o transplante, as células de memória e as demais células da medula óssea vão se recompondo. Mas somente dois anos depois do procedimento (às vezes um pouco mais no caso do transplante alogênico, conforme o uso dos imunossupressores) é que a maioria dos pacientes recupera a capacidade de resposta para as vacinas, ou seja, o corpo está apto para registrar de forma correta esses novos ‘programas de defesa’.
“Mas é importante lembrar que é justamente nos primeiros tempos após o transplante que os pacientes estão mais vulneráveis a infecções. Assim, é importante começar a refazer a carteira de vacinação já a partir do terceiro mês do procedimento, mesmo que nesse momento o sistema imunológico ainda tenha pouca capacidade de memória”, diz o infectologista.
Nos dois primeiros anos após o transplante são aplicadas apenas as vacinas consideradas seguras para esses pacientes: as que não utilizam vírus ou bactérias vivos, como as da gripe, pneumonia e Covid-19. Mesmo conferindo uma proteção menor quando comparada à proteção dada às pessoas em plena condição de saúde, as vacinas são muito importantes para os transplantados, afinal, alguma proteção é melhor do que nenhuma.
João Prats explica que são vetadas nesse período as vacinas fabricadas com vírus vivos, como as do sarampo, caxumba, rubéola (tríplice viral), febra amarela, varicela e poliomielite. Elas são seguras para indivíduos em condições normais de saúde, mas podem provocar essas doenças no paciente transplantado em razão da fragilidade de sistema imunológico. Vacinas desse tipo são aplicadas somente após dois anos do procedimento, quando o sistema imunológico já se encontra fortalecido, e, no caso dos transplantes alogênicos, quando os imunossupressores já foram interrompidos.
“Programas de transplante de medula óssea de excelência, como o da BP, que acaba de duplicar o número de leitos dedicados ao TMO, contam com agendas de vacinação incorporadas à estratégia de cuidado integral. Contudo, a conscientização dos pacientes, familiares e cuidadores para a importância da vacinação pós-transplante para recompor os programas de defesa é fundamental”, conclui o médico da BP.