Value-Based Healthcare: como agregar mais valor à oferta de produtos e serviços em saúde

Por Carol Gonçalves

Value-Based Healthcare é uma iniciativa de reestruturação dos sistemas de saúde em todo o mundo, cujo objetivo global é ampliar o valor para os pacientes, conter a escalada de custos e oferecer mais conveniência e serviços aos clientes”. É assim que o ideólogo do VBHC, Michael Porter, Ph. D, economista e pesquisador da Harvard University, explica o conceito, que vem emergindo como uma saída para lidar com o alto custo dos cuidados em saúde e a ineficiência clínica.

Segundo Wilson Follador, PhD, sócio-diretor da TechValue Consultoria em Saúde, o nome Value-Based Healthcare pode ser traduzido como Cuidados de Saúde Baseados em Valor. “Isso parece muito vago, mas deixa de ser quando entendemos que a palavra ‘valor’ é aplicada no seu sentido mais amplo, significando ‘mérito’, ‘utilidade’ ou ‘serventia’. Assim, podemos definir VBHC como uma nova filosofia que busca rever as relações que os partícipes dos sistemas de saúde têm entre si e com as necessidades de pacientes, procurando agregar mais valor à oferta de produtos e serviços em saúde”, expõe.

Wilson Follador

O VBHC nasceu dos conflitos observados atualmente nos sistemas de saúde em todo o mundo. Para Follador, as ciências médicas nunca estiveram tão avançadas, mas também nunca antes foi tão difícil estender os benefícios desses avanços para a população como um todo e de forma homogênea. “Após algumas iniciativas com baixos resultados em longo prazo, do tipo managed care, alguns pensadores passaram a propor que os sistemas de saúde fossem repensados para que pudéssemos, todos, nos alinharmos em direção a gerar mais valor nos resultados das intervenções em saúde, obtendo controle de custos a partir dessa perspectiva, e não o contrário”, conta.

Sobre as práticas do Value-Based Healthcare, o profissional da TechValue diz que há vários exemplos de propostas metodológicas, tais como o risk sharing (compartilhamento de riscos), o pagamento por bundles (veja abaixo), o pagamento por performance e o pagamento por capitação, entre outros. No entanto, todos seguem alguns princípios básicos:

  • Todo produto ou serviço em saúde precisa ter a excelência como meta;
  • A excelência deve ser mensurada por parâmetros objetivos e ligados não só a fatores econômicos, mas também à saúde dos pacientes;
  • A busca da excelência deve ser calcada na transparência e na disseminação de informações sobre resultados e práticas entre diferentes instituições, permitindo a análise comparativa e a reprodução dos métodos que alcançam melhor desempenho;
  • Todos os partícipes das ações em saúde devem envolver-se com os riscos e os benefícios de cada escolha, principalmente sob o aspecto econômico, reduzindo ou eliminando as práticas atuais, nas quais cada um deles (fornecedores de insumos, provedores de serviços e fontes pagadoras) entrega a sua parte do processo e não se responsabiliza por consequências futuras;
  • Uma das mudanças mais desejadas dessa nova sistemática é a transição do modelo de pagamento por serviços ou produtos consumidos (fee-for-service) para um modelo que privilegie o pagamento por resultados alcançados.

Sistema bundles

O sistema de pagamento por bundles é um dos formatos praticados para a remuneração por serviços de saúde, dentro da filosofia VBHC. A tradução literal da palavra bundle é pacote, mas evita-se usar essa terminologia no Brasil para que não haja confusão com os pacotes que atualmente são empregados nos sistemas de saúde.

Os pacotes atuais são formas de remunerar atos episódicos: uma cirurgia, uma internação, um conjunto de materiais, etc. Follador explica que na proposta de pagamento por bundles, não se pagam episódios, mas, sim, ciclos de tratamento. Uma determinada necessidade médica é remunerada não só pelo custo da intervenção aplicada, mas também por todas as consequências da qualidade da intervenção escolhida. Por exemplo, um paciente com osteoartrite de joelho que precisa receber uma prótese poderia, pelo sistema de remuneração atualmente praticado no Brasil, receber um implante muito caro, onerando o seu plano de saúde, ou um implante muito barato que poderia se quebrar em pouco tempo, requerendo nova cirurgia, o que também oneraria o plano de saúde e seria bem indesejável ao paciente.

Num sistema de remuneração por bundles, uma intervenção deste tipo poderia levar a fonte pagadora a remunerar um prestador de serviços em um valor fixo por paciente, maior do que pagaria por uma prótese de baixa qualidade, mas menor do que o custo de uma população tratada com baixa qualidade.

A condição essencial para pagar um valor maior é que o prestador de serviços se responsabilize por todas as complicações que podem derivar de um mau serviço (quebra do implante, infecção no local da cirurgia, etc.), durante um determinado período de tempo (o ciclo). “Desta forma, todos poderiam ganhar: o pagador, que teria seus custos reduzidos em médio e longo prazos, o prestador de serviços, que teria uma remuneração justa por bons serviços prestados e, principalmente, o paciente, que não seria submetido a riscos desnecessários”, resume.

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No Brasil, o VBHC, enquanto conceito, parece estar se disseminando de forma rápida, embora as práticas não estejam acompanhando essa velocidade, na opinião de Follador. De certa forma, algumas iniciativas já vinham sendo tomadas de forma pontual e parcial, tais como a oferta de bônus ou de penalidades por bom ou mau desempenho. Porém, ele diz que tais iniciativas quase sempre usam indicadores de desempenho vinculados, de uma forma ou de outra, a fatores econômicos, como restrições à utilização de tecnologias de alto preço.

“Raríssimas vezes tive a oportunidade de ver uma iniciativa dessas que tivesse, como indicador, um elemento de saúde, do tipo ‘redução de complicações cirúrgicas’, ‘melhoria de parâmetros clínicos’ ou algo do gênero”, expõe. Essas iniciativas podem até resultar em algum benefício, mas também podem acarretar prejuízo à saúde dos pacientes
e/ou maiores custos em médio e longo prazos.

Para o profissional, o grande problema é que não temos o costume de medir tais resultados e, ainda, temos o péssimo hábito de não disseminar dados em saúde.

Follador lembra que, curiosamente, nos anos 90, surgiu um modelo de remuneração em saúde que se aparentava com um projeto de VBHC, chamado de PAS – Plano de Assistência à Saúde, implementado pela Prefeitura Municipal de São Paulo e baseado em pagamento por capitação. “Entretanto, os resultados obtidos foram frustrantes, com baixa qualidade no atendimento e custos muito elevados, o que é o contrário do esperado com um bom projeto de VBHC”.

Atualmente, algumas organizações e profissionais brasileiros estão se envolvendo profundamente com o desenvolvimento efetivo de práticas dentro do conceito. “Ainda estou aguardando para ver quando teremos melhores dados dessas organizações para poder começar a ver o VBHC emergir, de fato”, observa.

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Há experiências sendo desenvolvidas há algum tempo ao redor do mundo. O sócio-diretor da TechValue diz que os Estados Unidos parecem estar desenvolvendo a mais extensiva experiência em VBHC, com dezenas, talvez centenas de centros envolvidos em projetos sob diversos modelos, doenças e metodologias diferentes.

“O mais interessante é que uma grande parte desses centros estão vinculados aos programas Medicare e Medicaid, que representam o sistema de saúde público do governo dos Estados Unidos, e há uma séria e eficiente coordenação centralizada desses projetos. Muitos já estão colhendo resultados, mas me parece que a maioria ainda tem os projetos em andamento”, expõe.

Um exemplo interessante foi publicado no artigo Turning Value-Based Health Care into a Real Business Model, da revista Harvard Business Review, edição de outubro de 2015. Segundo ele, na Mayo Clinic, dos Estados Unidos, as cirurgias para remoção parcial de câncer de mama finalizavam, mas os resultados das biópsias só eram entregues 24 horas depois da operação. Em vista a isso, os serviços de patologia clínica foram reorganizados para que os resultados fossem entregues em cerca de 20 minutos, o que deu a chance de estender a excisão cirúrgica, se necessário, para complementar o procedimento pela retirada de quaisquer resíduos do tumor.

Embora isso tenha representado custos adicionais em relação ao tempo de cirurgia e laboratório de patologia clínica, observou-se que esse procedimento elimina a necessidade de nova cirurgia em cerca de 96% dos pacientes, que ocorreria se a biópsia tardia mostrasse tal necessidade. Assim, um estudo de cinco anos de dados dessas cirurgias resultou que a taxa de reoperação em 30 dias foi de 3,6% na Mayo em Rochester, Minnesota, versus 13,2% em nível nacional, no país.

Isso provou que os custos da Mayo para cirurgia são mais altos no curto prazo e resulta em perda da receita que seria obtida com as reoperações, mas reduz os custos médicos totais e trazem benefícios muito mais significativos para a saúde das pacientes.

Desafios

Follador considera que o Brasil tem grandes desafios a enfrentar para poder implementar práticas de VBHC. Entre os maiores, ele cita a reduzida disponibilidade de dados de custos e desfechos em saúde, as múltiplas diferenças de população e estrutura ao longo do nosso território e os baixos valores financeiros disponíveis para a saúde.

“Mas aquele que mais me preocupa e que, ao meu ver, será o problema mais difícil a enfrentar, é a baixa confiança que existe entre todos os partícipes dos sistemas de saúde, incluindo os próprios pacientes”, aponta. De acordo com ele, a falta da confiança tem raízes profundas e vem, em parte, da ocorrência de fraudes que envolvem empresas, profissionais e pacientes. Mas também tem muita força a percepção do “princípio da soma zero”, comentado por Michael Porter, através do qual se percebe ou se pratica a negociação na qual, para um ganhar, alguém precisa perder. “Isso é muito facilitado, no Brasil, pela falta de transparência nas relações entre os players”, ressalta Follador.

Em discussão

Durante o evento Healthcare Innovation Show (HIS), realizado em outubro do ano passado em São Paulo, Fabrício Campolina, presidente do Conselho de Administração da Abimed – Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde, disse que para termos um sistema de saúde sustentável e baseado em valor para o paciente precisamos equilibrar um tripé: a satisfação do usuário, a qualidade da assistência prestada e os custos, que devem ser adequados.

Campolina destacou que a mudança do atual modelo de remuneração de serviços médico-hospitalares – baseado no volume de procedimentos realizados – é um dos instrumentos mais importantes para garantir a sustentabilidade financeira do sistema de saúde brasileiro. “Se nada for feito, o custeio da Saúde demandará 25% do PIB em 20 anos, o que é inviável”, ressaltou, lembrando que hoje o país destina 9% do PIB a essa área.

Campolina apontou que é necessário também reduzir desperdícios e fraudes que, de acordo com estimativas do Instituto de Medicina Americano, comprometem 20% a 25% dos gastos com saúde.

A mesa de discussão reuniu Francisco Balestrin, presidente da Anahp – Associação Nacional dos Hospitais Privados, Reinaldo Scheibe, presidente da Abramge – Associação Brasileira de Planos de Saúde, e Daniel Greca, sócio diretor da consultoria KPMG.

Um dos consensos discutidos foi o de que o país ainda não está preparado para promover uma mudança rápida no atual sistema de remuneração. Todos concordaram, no entanto, que este caminho é inexorável e sem volta.

“Vamos precisar trocar a roda com o carro em movimento, construir um novo legado ao mesmo tempo em que o mercado amadurece para as mudanças. Para isso precisamos de mais profissionais capacitados em gestão. O paciente deve entender que, como cidadão, também é responsável pela sua saúde e pela sustentabilidade do sistema”, disse o representante da KPMG.

O presidente da Abramge afirmou que existe hoje uma cisão de informações entre a medicina privada e o SUS e defendeu que o paciente seja o detentor dessas informações e possa carregá-la em todos os atendimentos a que for submetido. Essa seria uma maneira de evitar, por exemplo, a repetição desnecessária de exames e o desperdício.

Já Balestrin destacou que, embora todos concordem que a mudança é necessária, ainda existe hoje uma assimetria de interesses entre os atores da cadeia de saúde.

“Para chegarmos a uma convergência, precisamos definir qual é o valor que queremos entregar para o paciente. Além disso, o sucesso de um novo modelo passa também por uma melhor organização e gestão do sistema de saúde, pela melhoria da formação dos profissionais que atuam na área e pela redução dos desperdícios”, assinalou o presidente da Anahp.

Na prática

O Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo (SP), se tornou o primeiro do Brasil a adotar um novo modelo de remuneração de serviços médicos para uma unidade completa, a Vergueiro, que recebeu investimentos de R$ 140 milhões e foi inaugurada em julho de 2017.

Segundo o modelo, os pagamentos são feitos pelas operadoras de saúde ao hospital por protocolos ou por tratamentos e não mais por itens. E o risco do processo é compartilhado entre hospital, operadora e fornecedores.

Paulo Bastian. Foto: Leandro Godoi

Conforme explicou o superintendente executivo, Paulo Vasconcellos Bastian, durante palestra no Conecta Saúde, realizado em outubro do ano passado em São Paulo, os objetivos da instituição são foco na qualidade e redução de custos com uma estimativa de 25% a 30% de economia.

O trabalho começou em agosto de 2016. O novo modelo de contrato foi elaborado em conjunto com todos os envolvidos no processo. O corpo clínico do hospital, que é fechado, cumpre todos os protocolos para garantir alta qualidade da assistência e impedir a reinternação do paciente.

Para padronizar os produtos que serão utilizados em cada procedimento, o hospital fez uma parceria global com os fornecedores. Cabe a eles oferecer qualidade, assistência técnica e bom preço. “Os parceiros são os mesmos da unidade Paulista, mas a precificação é especial para esse modelo de negócio”, contou Bastian. Várias operadoras de saúde já fecharam com o hospital, que está aberto a novas interessadas.

Vale lembrar que a Unidade Referenciada Vergueiro não é porta aberta, ou seja, as pessoas não podem chegar por conta própria ao local, apenas através do ambulatório ou pela indicação da operadora. “Quando é porta aberta, o paciente pode utilizar o médico de sua confiança, que segue um protocolo próprio. Cada um tem um preço. No caso da unidade Vergueiro, o paciente é atendido por um corpo clínico que está habituado a trabalhar com base no mesmo protocolo. Com isso, a previsibilidade de preço geralmente é a mesma, a não ser no caso de alguma intercorrência, e, mesmo assim, se o hospital for eficiente, vai conseguir ficar dentro dos padrões já praticados”, explicou.

Bastian contou que esse modelo pode ser chamado de remuneração por tratamento ou por protocolos. Ele já é utilizado em outros hospitais, inclusive na unidade Paulista do Oswaldo Cruz, mas parcialmente, já que sua operação é porta aberta. “A unidade Vergueiro foi criada para trabalhar neste modelo, por isso, a implantação é mais fácil”, disse.

Segundo o superintendente, o foco está no estabelecimento de uma relação de confiança e alta resolutividade. “Precisamos ter credibilidade para uma boa convivência”.

 

Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 89, de janeiro/fevereiro de 2018. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-89-revista-hospitais-brasil

Redação

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