Logo vamos assistir ao fim do uso da expressão “tecnologia médica”. Não fará mais sentido explicar a expansão da tecnologia na medicina: tudo será medicina. Da mesma forma como não faz mais sentido, por exemplo, explicar a tecnologia bancária: quando pensamos em um banco no século XXI, automaticamente nos vem à mente a certeza do universo digital. Uma criança que nasça em 2017 terá como única verdade a ideia de que qualquer transação em moeda será inevitavelmente eletrônica. O mercado digital entrará por seus poros e estará presente em seu DNA desde sempre.
eHealth ou Digital Health são expressões que gravitam em torno de nossa vida nos dias de hoje. Como a indústria de serviços de saúde é uma das últimas a mergulhar no ecossistema digital, tudo nos parece inovação. Mas, à medida que o tempo avança, vamos nos acostumando a não mais colidir com as expressões: prontuário eletrônico, prescrição eletrônica, consulta remota, aplicativos de saúde para smartphones… Vamos incubar em nossa ideia de saúde a paisagem digital.
Provedores de serviços vão aproveitar ao máximo a composição genética de um paciente, estudar as imagens corporais através de algoritmos, aferir registros de saúde eletrônicos em toda a sua extensão preditiva, utilizar dispositivos portáteis e absorver milhões de dados de pesquisa médica em tempo real. Farão isso como quem desce ou sobe de uma escada. Será orgânico.
A ideia de um paciente agnóstico sobre suas escolhas em saúde, alguém à margem, sectário, omisso e irresponsável também será cada vez mais rejeitada. As pressões da sociedade, do Estado, do mercado e da família vão nos encurralar na direção de uma nova relação com nosso corpo, nosso habitat natural. Desprezá-lo causa milhões de problemas para o ser humano e para a civilização moderna. Avançar no autocuidado é uma das grandes transformações socioeconômicas do século XXI. Se o estigma para essa notável jornada é a consciência de cada indivíduo, e da sociedade como um todo, a estrada para se chegar lá é a tecnológica.
“Seja ou não ouvido, tudo tem um som, uma vibração própria.” O que está acontecendo hoje em eHealth é exatamente isso: o som está sendo ouvido. De acordo com as leis da física, tudo reverbera: objetos, alimentos, pedras, árvores. Ouvir a tecnologia não é mais uma opção para os sistemas de saúde, passou a ser uma obrigação. Saúde conectada, personalizada, de precisão, integrada, otimizada, etc. Os sons estão por todos os lados. Talvez nem seja preciso ouvi-los, mas simplesmente saber que estão lá e começar a jornada em sua direção.
A capacidade de “ouvir os novos tempos” tem sido uma das características da China. Nas últimas décadas, o país vem tentando combinar a sua milenar cultura médica (Zhõngyí xué) com os desafios sanitários de uma nação com mais de 1,3 bilhão de habitantes. As matrizes dessa empreitada só podem ser enfrentadas com a utilização maciça das tecnologias digitais. Exemplo: há mais de 100 milhões de pessoas com doenças reumáticas no país. Essa legião busca serviços médicos regularmente em hospitais, que, por sua vez, contam com não mais de 5.000 reumatologistas. A maioria dos pacientes com artrite na China percorre longas distâncias em busca de cuidados hospitalares, ficando geralmente em hotéis próximos, aguardando longas filas para consultar um especialista. Não é incomum que a maioria dos reumatologistas chineses tenha de atender entre 60 a 100 pacientes diariamente, gastando em média três minutos por consulta.
Em resposta a essa insana demanda, pesquisadores do país desenvolveram um Sistema Inteligente de Gerenciamento de Doenças (SSDM), composto por uma série de aplicativos para consulta on-line. Os dados são notáveis. De fevereiro de 2015 a junho de 2017, o estudo avaliou 403 reumatologistas, que forneceram a 4.002 pacientes reumáticos 293 consultas gratuitas e 3.709 pagas. Em média, o custo da consulta pelo sistema on-line foi 6,61 vezes menor do que o convencional. Além disso, 66% dos pacientes relataram que a consulta on-line foi “muito satisfatória”. O relatório causou um impacto sem precedentes. Afinal, estamos falando de uma horizontal de atendimento que pode se estender a mais de 100 milhões de indivíduos.
O princípio do SSDM é simples: médicos não só tratam, como ensinam o paciente a se tratar. Através de um treinamento personalizado, os pacientes podem inserir dados regularmente para acompanhar efetivamente o seu progresso. Pesquisas indicaram que aqueles com artrite reumatoide na China, treinados para usar o SSDM, foram capazes de realizar autogerenciamento, incluindo avaliação da atividade da doença em 28 articulações. A China está escutando bem, e colocando o som digital para dentro de seu universo assistencial.
Casos semelhantes estão se multiplicando ao redor do mundo, criando uma nova forma de fundir as demandas do paciente com sua própria autogestão. Digital Health é um novo som que precisa ser ouvido no Brasil. Não basta escutar o som das crianças chorando nas salas de emergência, ou os gritos do pai desesperado à espera do atendimento para seu filho, ou, ainda, as bravatas políticas que ressoam por todos os cantos dos sistemas de saúde. É preciso ouvir o som da inovação, das transformações e do futuro.
Guilherme S. Hummel é Head Mentor do EMI – eHealth Mentor Institute
Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 88, de novembro/dezembro de 2017. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-88-revista-hospitais-brasil