Artigo – “Burnout” e Assédio Moral

Conforme exponho em meu livro “Burnout: a doença que não existe”, o número de problemas com a noção de Burnout é tamanho que torna-se difícil fazer uma lista deles. Uma lista pressupõe a citação de itens, um por um, dispostos linearmente ou em colunas. Ocorre que as inconsistências e absurdos da noção de Burnout são de tal modo imbricadas umas com as outras, que seria mais preciso falar em um emaranhado do que em uma lista. Imagine um emaranhado de linhas. Você consegue perceber que é um emaranhado, mas é impossível entender como se dão os nós ali dentro. É o caso do Burnout, a que me refiro como “um estado de confusão”.

Neste artigo, não vou me estender sobre aspectos mais amplos e gerais do “Burnout” – por exemplo, que é o maior desserviço para a Medicina e para a opinião pública dos últimos 50 anos, só competindo com as malfadadas “personalidades múltiplas” da psiquiatria americana; ou que é uma “síndrome” com 140 sintomas, que se confunde com ao menos trinta categorias diagnósticas da psiquiatria e com centenas de experiências comuns da vida em geral, cabendo tudo no saco sem fundos da alegada “doença”. (A síndrome das “personalidades múltiplas” fez mais sucesso que o Burnout e permaneceu nos DSMs – o sistema classificatório americano – por décadas, até que se revelasse uma grande farsa. Para quem quiser ter uma ideia de até que ponto pode chegar a credulidade humana na área dos transtornos mentais, sugiro assistir ao documentário “As 24 personalidades de Billy Milligan”, da Netflix).

Assim, hoje apresentarei questões relativas a Burnout e assédio moral.

É frequente a ideia de associação entre os dois fenômenos, seja feita por profissionais ou leigos, que imaginam e mesmo publicam sua suposição de que uma pessoa que sofreu assédio moral acabe por desenvolver “Burnout” – entre aspas, pois é impossível realizar objetivamente o diagnóstico médico dessa inexistente “doença”.

Burnout” não só não tem nada a ver com assédio moral, como são conceitos antagônicos e mutuamente excludentes, pois o primeiro diz respeito a um problema individual e o segundo remete o assunto para questões organizacionais. Não há uma só linha nos principais teóricos do “Burnout” que inclua o assédio moral como um fator causador dessa “síndrome”. No Brasil, entretanto, há autores que associam uma coisa com a outra e não é difícil entender porque façam isso, dado que cabe tudo e sempre um pouco mais nas “teorias” sobre Burnout.

Um trio de médicos americanos parece ter se dado conta da incompatibilidade entre os dois fenômenos e publicou um interessante artigo onde deixam isso claro. Intitulado “Porque Burnout é o nome incorreto para o sofrimento do médico”, dizem, entre outras coisas: “O termo Burnout sugere […], em essência, que o problema reside no indivíduo que, de alguma forma, está falhando. Os médicos consideram seu

trabalho desafiador, mas acreditamos que “Burnout” é uma deturpação. […] Acreditamos que os médicos não estão burned out, mas sofrendo danos morais. […] O dano moral localiza a fonte de sofrimento, apropriadamente, fora do médico e dentro da própria estrutura de negócios da saúde.” (Dean, W., Dean A. C. &Talbot, S. G., 2019. “Why ‘Burnout’ is the Wrong Term for Physician Sufferingwww.medscape.com/viewarticle/915907).

Fica evidente que o “Burnout” – que esses autores também colocam entre aspas – mais esconde do que revela as causas do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, sobretudo se considerarmos que o assédio moral é uma das principais, senão a principal causa de adoecimento mental relacionado ao trabalho. Vale considerar, ainda, que os argumentos apresentados nesse artigo aplicam-se a qualquer organização, seja relacionada a trabalhadores da área da saúde ou não.

Concluindo: como no saco sem fundos do Burnout cabem 140 sintomas, cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria, 24 doenças gerais e centenas de experiências comuns do dia a dia que não caracterizam nenhum transtorno mental, o assédio moral vai junto, também, para dentro desse saco sem fundos.

 

Estevam Vaz de Lima é médico pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP); psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association. Autor do livro “Burnout: a doença que não existe”

Redação

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