O esquecimento de um corpo estranho (como agulhas de sutura, materiais têxteis (compressas e gazes), pinças, entre outros) durante a realização de um procedimento cirúrgico é complicação médica descrita na literatura internacional. Os relatos, contudo, não são abundantes, de forma que se acredita que a incidência desse evento é subestimada: está registrada na literatura a ocorrência de um caso em cada 1.000 a 1.500 cirurgias abertas na cavidade abdominal, sendo que as compressas cirúrgicas representam o material mais comumente deixado nos pacientes.
Em princípio, em qualquer tipo de cirurgia pode ocorrer o esquecimento de um corpo estranho; entretanto, esse fato acontece mais frequentemente nas cirurgias abdominais, principalmente nas emergências, nos procedimentos hemorrágicos e nas cirurgias prolongadas, quando geralmente há trocas na equipe cirúrgica, podendo haver problemas em relação à rotina de contagem das compressas no momento do fechamento da cavidade abdominal.
Ocorrendo o esquecimento, o grau de reação do organismo ao corpo estranho dependerá de sua natureza. As compressas deixadas na cavidade abdominal produzem uma forte reação tecidual que ocorre de duas maneiras: aderências e encapsulação do corpo estranho, o que resulta num granuloma com calcificação ou até mesmo ossificação, processo esse que pode manter o indivíduo sem qualquer sintoma por longo período; e processo inflamatório que poderá evoluir para a formação de um abcesso, bem como em tentativa de eliminação do corpo estranho pela via que oferece a menor resistência, seja a ferida operatória, o local onde se encontra o dreno, ou o trato gastrintestinal. Nesses casos, durante a evolução, pode ocorrer obstrução intestinal ou a formação de fístulas.
Quanto aos sintomas, esses costumam ser: dor abdominal, náuseas, perda de peso, interrupção do trânsito intestinal, sintomas urinários, fístulas entre outros. Um quadro clínico inespecífico, com queixas abdominais vagas e ocasionais, sintomas abdominais inexplicáveis, deve alertar para a possibilidade da existência de um corpo estranho desde que haja história de realização de cirurgia abdominal prévia.
De se notar que as complicações que podem advir pelo esquecimento de um corpo estranho são potencialmente fatais. Quanto maior o tempo decorrido até o diagnóstico, maior a probabilidade da ocorrência de complicações.
Nos casos em que houver suspeita de esquecimento de corpo estranho, deve-se investigar o caso com muito cuidado, valorizando-se o quadro clínico e solicitando-se exames de imagem.
Confirmada a suspeita, o tratamento é sempre cirúrgico, com a remoção do corpo estranho, drenagem da secreção purulenta, se houver, e reparações de órgãos e demais lesões.
Além das consequências físicas e emocionais para os pacientes e familiares, deve-se ter em mente ainda as possíveis consequências aos profissionais responsáveis pelo ato cirúrgico.
Inobstante seja um fato que ocorre com frequência determinável, ainda assim a norma jurídica considera como violação de um dever de cuidado, podendo então ter ramificações tanto cíveis quanto criminais.
Do ponto de vista cível, tem-se as ações de indenização por danos materiais, morais, e/ou estéticos, com a possibilidade de condenação dos profissionais envolvidos a vultosos pagamentos – o que, hoje em dia, muitas vezes já é coberto pelos seguros de responsabilidade profissional.
A segunda ramificação é a criminal, e para esta não existem as redes protetoras dos seguros profissionais. Pode o médico ver-se responsabilizado pelo delito de lesão corporal ou homicídio, a depender do caso concreto. Ademais, também é possível que da análise de cada questão individual se considere que o profissional agiu com grau de descuido tão elevado que ultrapassa o que se chama de crimes culposos, adentrando a seara do crime doloso, os quais possuem penas bastante elevadas, chegando o homicídio a prever penas de até vinte anos de reclusão.
A melhor forma de se prevenir esta situação é o zelo extremo do cirurgião durante o ato operatório, principalmente nas cirurgias complicadas ou de emergência, com duração prolongada, sangramentos intensos e com equipes cirúrgicas menos experientes, como ocorre em locais de ensino. Neste sentido, algumas medidas profiláticas devem ser pontuadas:
Primeira, ao final do ato operatório, a contagem sistemática das compressas é obrigatória. Havendo dúvidas, deve-se solicitar a realização de exames de imagem ainda na sala operatória; caso ainda reste alguma dúvida após essas medidas, o sítio cirúrgico deve ser reabordado imediatamente.
Segunda, é importante a utilização de materiais cirúrgicos com marcadores radiopacos, pois estes facilitam a sua identificação quando da avaliação radiológica.
Terceira, nos casos de cirurgias abdominais, o cirurgião deve explorar e inventariar completamente a cavidade abdominal antes de realizar o fechamento da parede abdominal, não devendo simplesmente aceitar uma pretensa contagem correta de compressas.
A utilização dessas medidas preventivas – que dependem, fundamentalmente, do zelo do cirurgião e de sua equipe – é a melhor maneira de impedir o indesejável esquecimento de um corpo estranho, protegendo assim não apenas aos profissionais, mas, sobretudo, os pacientes.
Dessa maneira, mesmo que em movimentos individuais, e ainda que levados à ação apenas após um caso concreto, é extremamente salutar que os profissionais comecem a adotar práticas preventivas para encarar possíveis enfrentamentos na justiça, posto que com isso, necessariamente, busca-se evitar riscos desnecessários e danos aos pacientes, fim último da medicina.
Assim, o desafio passa pela disseminação de uma cultura de criação e aplicação de medidas preventivas na profissão, combinada com um movimento amplo que abranja desde as universidades aos ambientes de trabalho.
Se a grande meta de um profissional é ter o maior número de casos finalizados com sucesso, a grande meta desta faceta da interface do direito com a medicina é um dia termos o compliance médico transformado em prática universal e cotidiana.
Ana Paula Souza Cury é sócia-fundadora de CGRC Advogados, mestranda em Direito Médico pela Universidade de Edimburgo e integrante da Comissão de Direito Médico da OAB/SP e da Sociedade Brasileira de Bioética
Fábio Cabar é sócio-fundador de CGRC Advogados, médico, advogado e integrante da Comissão de Direito Médico da OAB/SP
Maria Luiza Gorga é sócia-fundadora de CGRC Advogados, doutoranda em Direito Penal pela Universidade São Paulo e integrante da Comissão de Direito Médico da OAB/SP