Slow Medicine: A medicina sem pressa, sóbria, respeitosa e justa

Por Carol Gonçalves

Tempo para ouvir, tempo para refletir, tempo para construir relações sólidas e duradouras entre médicos, pacientes, famílias e comunidade. É isso que preza a chamada Slow Medicine: uma filosofia e uma prática médica que buscam oferecer o melhor cuidado, baseando-se nas melhores evidências científicas, centrando o foco no paciente e em seus valores, elaborando decisões ponderadas e cautelosas, sempre que possível compartilhadas. “Propomos um cuidado que busque a tecnologia apropriada à singularidade de cada paciente e de sua situação vivencial, tendo como premissa que nem sempre fazer mais significa fazer o melhor”, explicam os idealizadores do portal www.slowmedicine.com.br.

A primeira alusão ao termo foi feita no artigo do cardiologista italiano Alberto Dolara, publicado em 2002, em um suplemento do Italian Heart Journal, chamado “Invitation to a Slow Medicine”. Nele, o médico salienta o surgimento do movimento Slow como uma contrapartida ao “constante impulso para a aceleração na sociedade moderna”. Ele sugere que diferentes áreas, como a medicina preventiva, a oncologia, as doenças infecciosas e as doenças crônicas, os cuidados aos idosos e ao final da vida, poderiam se beneficiar com uma abordagem mais ponderada e cautelosa.

Desde então, o assunto foi ganhando cada vez mais adeptos e acabou sendo tema de diversos materiais. Merece destaque Ladd Bauer, autor do primeiro artigo publicado em uma revista de língua inglesa sobre Slow Medicine, em 2008. Ele é o organizador do website sobre a História da Slow Medicine, que reúne um conjunto excepcional de informações sobre o desenvolvimento da filosofia no mundo.

A primeira Sociedade de Slow Medicine foi constituída na Itália, em Torino, em janeiro de 2011. Nesta ocasião, foi produzido o manifesto multilíngüe do movimento. Veja no quadro a seguir um resumo dos conceitos.

Manifesto Slow Medicine

Sóbria Uma medicina sóbria implica a capacidade de agir com moderação, de forma gradual e essencial. Fazer mais não significa fazer melhor.
Respeitosa Uma medicina respeitosa leva em consideração que os valores, as expectativas e os desejos das pessoas são diferentes e invioláveis.
Justa Uma medicina justa promove cuidados adequados e de boa qualidade para todos.

O marco inicial da Slow Medicine no Brasil foi a entrevista do cientista Marco Bobbio para a revista Veja, em dezembro de 2014. Líder do movimento na Itália, ele é professor de cardiologia e especialista em estatística médica. Publicou o consagrado livro “O Doente Imaginado”, disponível para leitura no link goo.gl/dgLhq2.

Dario Birolini, médico e professor reverenciado, considerado “profissional slow”, é um dos organizadores do site já citado, onde expôs sua opinião sobre o livro de Bobbio: “ele analisa o perfil atual das publicações científicas e do exercício da Medicina, chamando a atenção, mais uma vez, para a manipulação das pesquisas, para a distorção na interpretação dos dados divulgados, para a invenção de novas ‘doenças’ e para os impactos de uma série de recomendações movidas por interesses puramente econômicos”.

Birolini não tem a menor dúvida de que os princípios básicos da Slow Medicine, se adotados tanto pelos pacientes quanto pelos médicos, podem trazer um benefício fantástico para o exercício da profissão, além de reduzir custos. “Hoje em dia, se joga muito dinheiro fora com prescrição de vários exames e medicamentos sem qualquer utilidade”, declarou o profissional em entrevista publicada no site.

Bobbio, Birolini e outros profissionais abordaram o tema no Conecta Saúde, evento realizado em outubro último pela Fehoesp – Federação dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas e Demais Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado de São Paulo.

Durante o encontro, Bobbio mostrou que na Itália há uma rede de hospitais que vem aplicando esse conceito com resultados surpreendentes. Ele mostrou que é possível, sim, mudar paradigmas e prestar uma assistência racional, segura, realmente necessária e baseada em evidências. “Precisamos voltar à medicina real e realmente tratar os seres humanos. Não é apenas usar a tecnologia. Ela não deve ser a única ferramenta”, explicou. O primeiro passo é estabelecer uma relação humana com os pacientes, antes da clínica.

O médico Yussif Ali Mere Jr, presidente da federação e do Sindhosp – Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo, considera esse assunto fundamental para a sustentabilidade do setor da saúde em nível global.

“Para lidar com os desafios do envelhecimento populacional, do combate ao desperdício e de um modelo assistencial que se sustente em médio e longo prazos, precisamos resgatar a verdadeira medicina. Ela precisa retornar à sua característica de ciência que cuida da vida humana. Precisamos voltar a cuidar de pessoas e não simplesmente tratar de doenças”, declara.

Segundo ele, a Slow Medicine é um caminho que inverte a estratégia do sistema e certamente diminui custos, na medida em que investe fundamentalmente no cuidado profissional e na pessoa, tanto naquele que cuida como naquele que é cuidado, além de se utilizar da tecnologia apropriada de forma cautelosa. “É possível fazer mais com menos em saúde, de forma mais humana, respeitando os valores e as expectativas das pessoas”, ressalta Mere Jr.

O profissional slow

No site Slow Medicine, está disponível um texto traduzido do italiano pelo Prof. Dario Birolini. Nele estão as características do profissional slow:

  • Pratica a evidence based medicine entendida como a integração dos resultados da pesquisa clínica, com a experiência própria e com as exigências e os valores do paciente e das pessoas próximas a ele, com base na relação entre os benefícios, os riscos e as incertezas;
  • Adota uma rigorosa postura ética; o paciente e as pessoas que lhe são próximas são o centro das intervenções, cujo objetivo é aumentar o bem-estar psíquico e físico e a autonomia na tomada de decisões;
  • Presta muita atenção para que os pacientes não sejam manipulados ou usados para a obtenção de vantagens para si próprio, para não aproveitar sua fragilidade com o intuito de criar dependência, para não oferecer informações equivocadas ou incompletas, para não denegrir outras formas de tratamento, para não crer ou não induzir o paciente a acreditar que ele possui o conhecimento “verdadeiro” e completo e para não deixar de ter consciência de seus limites;
  • Possui uma profunda consciência de quais são os limites da medicina e não propõe aos pacientes tratamentos que sejam excessivamente onerosos ou que tenham vantagens muito hipotéticas ou duvidosas;
  • Está ciente que a saúde deve ser defendida e protegida em nível social, econômico, ecológico, sistêmico e, em consequência, deve ser o foco central de todas as políticas públicas, e não apenas da sanitária. Por estas razões, torna-se necessária uma avaliação sistemática do impacto das políticas públicas na saúde dos cidadãos;
  • Antes mesmo de ser um técnico competente, é um educador: daí resulta o impacto dos aspectos de comunicação e de relacionamento durante todo o tratamento, posturas estas que implicam a participação constante dos cidadãos na gestão da saúde;
  • Coloca-se as seguintes questões: qual é o campo de atuação que minha atuação profissional abrange? O que proponho funciona e me permite obter resultados úteis para o bem-estar do paciente? Quais são os possíveis efeitos adversos associados? Como avalio as melhorias alcançadas? De que forma as orientações que proponho a meus pacientes se integram de forma útil e sustentável com outras orientações e com outros padrões de tratamento aos quais eles tenham acesso?;
  • Estuda, pesquisa e se integra com outros profissionais, para poder explicar ao paciente quais procedimentos são comprovados, quais são fruto de experiência e quais são fruto de opiniões;
  • É capaz de reconhecer o que não sabe e evita adotar posturas de autopromoção.

Choosing Wisely

Fazer escolhas certas é a base da Slow Medicine. Segundo Mere Jr, já existem ferramentas que auxiliam médicos e pacientes a escolher com sabedoria e racionalmente o melhor tratamento ou procedimento, de acordo com o perfil singular de cada um. Esse conceito está sendo disseminado e é conhecido no mundo como Choosing Wisely.

Pesquisa com a comunidade médica norte-americana mostra que 59% dos médicos realizam procedimentos simplesmente por pressão ou a pedido dos pacientes, e 84,7% indicam exames e procedimentos por medo de más práticas ou futuros processos.

É imprescindível que o paciente seja parte integrante desse processo de mudança. O movimento Choosing Wisely sugere que ele leve ao médico algumas questões, antes de decidir pelo tratamento, procedimento ou exame. São elas:

1

Esse exame/tratamento ou procedimento é necessário?

2

Quais as vantagens, desvantagens e os riscos a que serei submetido?

3

Existem alternativas mais simples ou mais seguras?

4

O que acontece se eu não fizer nada?

5

Quais são os custos envolvidos?

O Proqualis é o canal de divulgação da iniciativa Choosing Wisely no Brasil (proqualis.net/choosing-wisely-brasil). Cabe às sociedades de especialidades elaborarem, por adesão voluntária e com total independência, suas listas de recomendações, a serem centralizadas e divulgadas em seção do portal referente.

Além da Choosing Wisely, o guarda-chuva da Slow Medicine inclui Medicina Narrativa, Cuidados Paliativos, Cultivamos a Saúde, Medicina Baseada em Valores, Medicina Humanista e Cuidados Apropriados. “Devemos fazer o nosso melhor para manter a Slow Medicine como um conceito aberto, como um grande guarda-chuva que de cobre todas as formas de medicina permeadas de boas ideias de como cuidar dos pacientes. Um meme, não um plano ou um conjunto de técnicas. Uma construção cultural de valores”, segundo frase de Ladd Bauer.

Matéria originalmente publicada na Revista Hospitais Brasil edição 88, de novembro/dezembro de 2017. Para vê-la no original, acesse: portalhospitaisbrasil.com.br/edicao-88-revista-hospitais-brasil

Redação

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